O toque da zabumba, os versos, as cantorias, as cores das roupas, a dança e o legado dos mais velhos… Tudo encantou os olhos de Cícera Flatenara desde a puerícia. Hoje, aos 27 anos de idade, a cearense nascida e moradora de Juazeiro do Setentrião é mestra do reisado, sintoma cultural que celebra o promanação de Cristo e a visitante dos reis Magos ao “Menino Deus”.
A data de 6 de janeiro, Dia de Reis, que é o mais importante para a solenidade, tem dois sentidos para ela. Antes, de celebração. Mas, agora, também de dor. O pai dela, rabino Cicinho (Cícero da Silva, de 44) foi assassinado neste dia, no ano pretérito, enquanto preparava o evento. Mesmo em luto, ela diz que tem a missão de inspirar outros jovens a participarem do reisado e fazer com que mais olhos brilhem, uma vez que ocorreu com ela, pela arte do pai.
Rabi Cicinho era do Reisado de Manuel Messias. A filha abraçou o legado e segue com o grupo. Ela aprendeu tudo com o pai, inclusive porque ele criou também um grupo para filha para que ela abraçasse a missão de fazer com que a cantoria nunca findasse. “Foi meu pai que me incentivou, ensinou, e fez crescer. A gente montou um grupo de reisados chamado Mirim Santos Expedito”, diz. Ela explica que o pai tirou numerário do próprio bolso para fazer as roupas e os instrumentos. Hoje pelo menos 30 crianças e adolescentes participam das atividades.
“As crianças veem o cromatizado e pedem para entreter. Hoje eu passo para os meus dois filhos. Quando eu não estiver cá, vai ter quem dê perenidade por mim”, conta Cícera Flatenara.
Eles já conhecem o que fazem os mestres (que coordenam o reisado), os contramestres, as personagens de Mateus, Catirina, reis, rainha, a princesa e o príncipe, além de embaixadores, que puxam a música na hora da dança. Assim, se organiza o cordão. Os sons dos instrumentos de percussão e corda se misturam para feitiço de quem aprecia a tradição.
Variedade
E pensar que mulheres, no século pretérito, não costumavam ser as mestras. “Mulher dançava mais o ‘guerreiro’ (de Alagoas). Meu pai foi um dos mestres que mais incentivava a participação das mulheres cá em Juazeiro do Setentrião”. Já é normal às vistas dos juazeirenses quando a mestra Flatenara ‘desafia’ homens para o tradicional jogo de espadas, em uma coreografia que impressiona quem está na roda. “O rei vai proteger a rainha e o príncipe no trono. Ele tem o dia todo para proteger a realeza do reisado e não deixar ninguém vir tomar.”
Um dos pares no jogo de espadas de Flatenara é o rabino Antônio Candido, de 35 anos, também divulgado na tradição da região. “Nosso foco é manter a tradição dos reisados uma vez que surgiram na região do Cariri, ao som da viola [do reisado de Congo)] e do maracá”. Ele celebra que a filha de 15 anos também já participa da sarau e já fez até o papel de rainha. O rabino enfatiza que essa é uma tradição nas comunidades tradicionais no período natalino, com participantes nas portas das casas, nas ruas, louvando o sagrado.
Ele é ligado ao Reisado Santo Antônio e faz ensaios todas as terças-feiras.
“Meu grupo é pequeno, a gente só tem 18 pessoas. O reisado, para mim, é alegria, paixão e esperança de um horizonte melhor. Isso é o que a gente passa aos mais jovens”, afirma Antônio Candido.
Em sua memória, a sintoma está vinculada ao som da zabumba, caixa e pífano, mas também à viola, que faz segmento da tradição sítio. Outra ação é a “queima da lapinha”, que são as folhagens secas levadas ao incêndio a término de simbolizar as esperanças de cada pessoa. “Essas tradições são importantes para mim desde a minha puerícia.”
Repto
Referência de sons para Antônio Candido foi o rabino Nando, nome artístico do camarada violeiro Francisco Valmir da Silva Santos, de 45 anos, que aprendeu o reisado na zona rústico. Ele entende que, apesar das tradições, há dificuldades de manter o reisado vivo. “Chega a ser um repto por conta da internet. Existem brincantes jovens ou até adultos que não querem mais. Nós, que mantemos o reisado de Congo legítimo sempre convidamos os jovens a levar em frente esse folguedo do reisado.”
Ele observa que, nas escolas, as apresentações não são contínuas e existem dificuldades para que projetos sejam contemplados em editais públicos. “Quando a cultura vai para a escola, os alunos tornam-se novos aprendizes dos reisados. Principalmente para formar novos tocadores de viola ou violão”, diz. Rabi Nando explica que, mesmo com as características particulares de cada estado, os reisados têm semelhanças pelo país.
De setentrião a sul
A 3,6 milénio quilômetros de intervalo de Juazeiro do Setentrião, a preocupação de fazer com que o reisado siga possante está em grupos na cidade de Esteio (RS), que chamam a exibição de “terno de reis”. O acordeonista Gabriel Romano, de 37 anos, diz que aprendeu com o avô, mas teme que a tradição caia no esquecimento. “Na tradição, o terno de reis vai até uma mansão sem avisar. A gente chega e começa a trovar na porta até a pessoa ouvir e invitar para entrarem. A gente faz várias apresentações por dia.” Originalmente, os artistas usam o improviso.
Uma vez que as apresentações do reisado gaúcho do grupo de Gabriel (Estrela Guia de Esteio) são mais curtas, há uma brecha já consagrada, em uma música que usa versos uma vez que “Cristo podia nascer entre ouros e cristais, mas, para dar exemplo ao mundo, quis nascer entre animais. O de mansão sublime gente, se quiser nos respeitar, abre a porta e mande entrar.” O músico entende que, mesmo pautado pela religiosidade cristã, há uma preocupação de atender um público mais diverso, inclusive para adeptos de religiões de matriz africana.
Gabriel anda feliz porque no grupo conseguiu atrair uma acordeonista de 12 anos, Anita, que é filha dele. “Ela foi vendo o terno e fazendo o movimento. A minha filha tem celular, usa internet, mas a gente incentiva ela a ter essas vivências na música. Para ela também saber que existe um mundo fora daquilo.”