Porquê eu ia dizendo, antes de ser bruscamente interrompido, o bestiário moderno agora inclui gente que afirma ser bicho. Uma escola de escol paulista, por exemplo, tem um aluno que se acha cachorro.
Ele quer ser visto porquê cão, os seus pais o tratam porquê tal — quer proferir, porquê pet, não porquê cachorro de rua — e querem que a escola também o faça. Virou saudação à multiplicidade e ação de inclusão. Ele é um therian e não está sozinho.
Neste mundo bicho do século XXI, que aboliu a existência do inconsciente e das neuroses, jogando no lixo Sigmund Freud e substituindo a psicanálise pelo identitarismo, eis que chegamos a leste ponto: o dos “therians”.
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A explicação é rasteira, mas suficiente nas superfícies em que nos comprazemos em viver: se você tem uma conexão tão grande com uma espécie bicho, a ponto de sentir que você pertence a ela e unicamente está recluso dentro de um corpo humano, você é um “therian”.
Há therians cachorros, porquê o menino da escola paulista, therians gatos, therians lobos (mas não guarás), therians raposas e por aí vai, mas sempre no universo dos bichos com o humilde charme da mediocracia. Aparentemente, não há therians gambás, tamanduás ou lêmures. Ou therians insetos, porquê baratas, pulgas ou percevejos.
Assisti no Instagram ao vídeo de dezenas de therians que se identificam porquê cachorros reunidos em uma estação de trens de Berlim. Eles latiam uns para os outros, alguns uivavam, muitos traziam máscaras de cães. Há também vídeos de pessoas andando de quatro na rua, as mais convictas conduzidas por coleira.
Para aumentar a minha incredulidade desencantada, assisti, ainda, à cena de uma therian equina, que corre e salta porquê fogoso corcel de hipismo. Ela é apresentada porquê prova inconteste da existência do, vou malparar o neologismo, “therianismo”.
É falta de leitura. Certas afecções mentais propiciam força e maleabilidade físicas impressionantes, porquê provam as histéricas estudadas pelo médico gaulês Jean-Martin Charcot, no século XIX, de quem o austríaco Sigmund Freud foi assistente. O tormento psíquico dessas pacientes internadas no Hospital Salpêtrière, em Paris, era tamanho, que elas eram capazes de contorcionismos até logo associados a influências sobrenaturais.
Porquê toda disparate que se pretende séria, inclusive para fugir ao profundo da questão que a suscita, há um substrato para explicar os therians. Li que são considerados pessoas “trans-espécies”. No meu revérbero condicionado de sempre estabelecer relações, ocorreu-me que a enormidade é uma derivação desmiolada da metempsicose.
A metempsicose fazia secção da princípio religiosa do velho Egito e viria a ser assimilada, de forma adaptada, por correntes filosóficas da Grécia. Difere da reencarnação porque, na metempsicose, o espírito volta em formas animais ou vegetais.
É porquê se o espírito do therian, portanto, tivesse reencarnado no corpo inverídico: voltou à Terreno porquê humano, em lugar de voltar porquê bicho. Derivação desmiolada da metempsicose, eu disse.
À diferença dos egípcios, porém, os therians não nos legarão uma cultura magnífica. A sua legado serão vídeos no Instagram e no TikTok e um aumento nas prescrições de remédios tarja preta, visto que será tarde demais.
Nascente/Créditos: Metrópoles
Créditos (Imagem de cobertura): Material ofertado ao Metrópoles