O debate sobre a internação forçada de moradores de rua que enfrentam obediência química tem ganhado destaque crescente no cenário jurídico e político pátrio. Frequentemente, afirma-se que o poder público não poderia realizar tais internações sem ordem judicial, uma vez que se qualquer forma de mediação estatal nessa material dependesse exclusivamente de autorização do Judiciário. Embora essa asseveração seja parcialmente verdadeira, ela ignora uma elevação jurídica fundamental expressa na própria Lei Federalista nº 10.216/2001, a norma universal que regula as internações psiquiátricas no Brasil.
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A lei em questão divide as internações forçadas em duas modalidades distintas: compulsória e involuntária. A internação compulsória exige, de veste, ordem judicial, conforme especificado no cláusula 9º da Lei 10.216/2001. Já a internação involuntária, por outro lado, não depende de decisão judicial prévia — é permitida a pedido de um “terceiro”, nos termos do cláusula 6º, inciso II. O que a legislação exige, nesse caso, é a ulterior emissão de laudo médico circunstanciado, além da notícia obrigatória ao Ministério Público no prazo de até 72 horas, o que está previsto no cláusula 8º, parágrafo 1º.
Essa diferenciação é principal para compreender que a internação involuntária, quando praticada com as garantias legais previstas, é um instrumento válido e necessário de proteção à vida, à saúde e à integridade de pessoas que, por motivo de doença mental ou obediência química severa, não possuem condições mínimas de autodeterminação.
Não é novidade.
O ordenamento jurídico ocidental reconhece, desde suas raízes no Recta Romano, a legitimidade da substituição da revelação de vontade de pessoas incapazes de exercê-la por si mesmas. Em todos os sistemas jurídicos de tradição civilista, o instituto da representação ou da tomada de decisão substitutiva é instrumento clássico de preservação da pundonor e da autonomia em contextos de vulnerabilidade psíquica, senilidade, puerícia ou interdição. A figura do “terceiro interessado”, prevista na Lei nº 10.216/2001, encaixa-se nessa tradição jurídica consolidada, que confere legitimidade a familiares, responsáveis legais e até agentes públicos qualificados para atuarem em nome do interesse maior do incapaz.
É nesse contexto que se insere a atuação dos entes federativos. A Constituição Federalista, no cláusula 24, inciso XII, estabelece que a União, os Estados e o Região Federalista possuem conhecimento concorrente para legislar sobre saúde pública. À União cabe editar normas gerais; aos Estados e municípios cabe suplementá-las, adaptando-as às suas realidades locais. Isso significa que Estados e municípios têm plena conhecimento para regulamentar, de forma complementar, os procedimentos administrativos da internação involuntária, desde que respeitados os parâmetros fixados pela lei federalista.
Com base nessa conhecimento, os entes subnacionais podem definir quem são os terceiros legitimados a solicitar a internação. Se o paciente não tem familiar ou responsável legítimo identificável, o “terceiro” pode ser um servidor público, atuando no treino regular de sua função em serviços de saúde, assistência social ou mesmo segurança pública, desde que os entes assim regulamentem em seus respectivos níveis federativos, respaldando o servidor público dentro do princípio de legitimidade estrita.
Portanto, não há ilegalidade quando um agente público devidamente autorizado, diante de um usuário de drogas em estado de vulnerabilidade extrema e incapacidade de consentimento, solicita sua internação involuntária para preservação da vida e ulterior recuperação clínica. A medida deve ser muito fundamentada e seguida dos procedimentos obrigatórios de avaliação médica e notícia ao Ministério Público, conforme a legislação federalista.
Outrossim, é imprescindível prometer ao internado tratamento digno, respeitoso e humanizado, uma vez que previsto na própria Lei 10.216/2001. A internação involuntária não pode ser utilizada uma vez que mecanismo de repressão social ou higienismo urbano, mas sim uma vez que instrumento de zelo quando a liberdade plena deixou de ser exercida por falta de discrição decorrente da obediência química grave ou da esquizofrenia.
Em tempos de aumento visível de moradores de rua e de quadros agudos de sofrimento mental nas grandes cidades brasileiras, ignorar a possibilidade legítimo da internação involuntária é preterição do Estado, não saudação à liberdade. Ao regulamentar o instituto, os entes federativos não afrontam a Constituição, mas a concretizam, protegendo aqueles que já não conseguem mais proteger a si mesmos.
A Lei nº 10.216/2001 oferece as bases jurídicas para essa atuação. Falta, em muitos casos, unicamente coragem política e perspicuidade técnica para enfrentar o tema com a seriedade que ele exige. Um suposto saudação a uma versão equivocada de direitos fundamentais não deve servir de desculpa para a indiferença institucional diante do colapso psíquico e da degradação humana.
Bernardo Santoro é investigador político e legisperito, rabi e doutorando em Recta, mentor do Instituto Liberal e sócio do escritório SMBM Advogados (smbmlaw.com.br).
https://revistaoeste.com/brasil/a-legalidade-da-internacao-forcada-de-usuarios-de-droga//Natividade/Créditos -> REVISTA OESTE