A ONG Rio de Sossego escolheu o último sábado de 2024 para ratificar a luta travada contra a violência que, em quatro anos, ceifou a vida de 49 crianças no Estado do Rio. Instalaria na Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões-postais da capital fluminense, fotografias de cada moça e cada menino mortos por projéctil perdida desde 2020. Dias antes, exibira as mesmas imagens em ato nas areias da Praia de Copacabana, cenário também marcante de atuação da organização. O termo de ano seguiria seu curso, não fosse a decisão do prefeito Eduardo Paes de mandar retirar, sem aviso prévio, os cartazes de uma revelação que, há quase uma dez, ocupa o mesmo endereço sem licença solene.
O prefeito, ora empossado para o quarto procuração, apelou à ordem pública para justificar o talante. Rememorou um símbolo dos seus primeiros quatro anos no missão. Acertou quem vislumbrou o meneamento de um potencial candidato a governador a porções conservadoras do eleitorado fluminense, gente que vibra com higienismo social e detesta “ongueiros”. Paes disse que qualquer homenagem precisa de autorização da prefeitura, “mediante a apresentação de um pedido formal”. Nem parecia o mesmo político que, dois anos detrás, elogiara a Rio de Sossego no documentário “A estética da luta”, de Guillermo Planel:
— Se paladar daquelas fotos na Lagoa Rodrigo de Freitas, certamente não. Adoraria chegar lá e expor: “Não pode mais isso”. Mas é uma veras da cidade. Acho que o espírito provocador de quem cutuca, de quem trabalha com muita conhecimento a imagem para invocar atenção, é muito importante para a cidade. Estamos falando de vidas que se perderam pela violência do Rio. O que a ONG faz é dar um tapa na faceta de todos nós, independentemente da função social, da posição que a gente ocupa, para invocar atenção para isso: “Não é normal a gente ter essa quantidade sendo assassinada nessa cidade permanentemente, por razão da violência”.
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Em nota, a prefeitura avisou que avalia a pertinência de manter a homenagem a policiais militares assassinados, também há anos no lugar:
— O município tem totalidade interesse em combater a violência, prestar justas homenagens às suas vítimas e está ingénuo para debater qualquer tipo de iniciativa, desde que seja previamente consultado.
Às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016, moradores da Lagoa já tinham instado um subprefeito de Paes a retirar da orla as peças que denunciavam a violência homicida e, ao mesmo tempo, homenageavam as vítimas. Nunca incomodou que a extensão, na origem Piraguá ou Sacopenapã, ligeiro o nome de Rodrigo de Freitas, último proprietário do talento ali em operação, adquirido do sogro em 1707. Nem que a vizinhança ostente um prédio Borba Gato, o bandeirante paulista que, além de fugitivo da lei e contrabandista de ouro, segundo Laurentino Gomes, responsável da trilogia “Escravidão”, “fez glória e riqueza na segunda metade do século XVIII percorrendo os sertões brasileiros à caça de indígenas para escravizar”.
A História costuma ser contada por vencedores; aos derrotados, o apagamento, a invisibilidade. Na esteira de pesquisas e vontade política, muito do que estava soterrado havia séculos emergiu em décadas recentes, num movimento tão justo quanto pedagógico. Indígenas, negros, mulheres, aos poucos, tomam ciência da relevância que tiveram — e têm — na construção de cidades, estados, do país, na luta por direitos.
Dias antes de a revelação do Rio de Sossego ser removida, o Instituto Queima Cruzado informou que, em 2024, 26 crianças foram atingidas por balas perdidas na Região Metropolitana do Rio; quatro morreram. Foi o maior número de baleados em nove anos de comitiva. Em novembro, o Fórum Brasiliano de Segurança Pública contabilizou que, em uma dez, 445 milénio pessoas negras foram assassinadas no país. Em 2023, de cada centena vítimas de mortandade violenta, 78 tinham a pele preta ou parda.
É uma massacre naturalizada, que não comove, não tira o sono, mal para a rotina de um bairro. O esforço de exibir nomes e retratos dos brasileirinhos mortos por projéctil perdida no Grande Rio, porquê fez a Rio de Sossego, tem a intenção de escancarar a humanidade de cada um; expor a injustiça; exigir indignação; despertar empatia; cobrar solução. Mas, no meio do caminho, estão a pedra da burocracia, a rocha do conservadorismo.
Nascente/Créditos: O Mundo
Créditos (Imagem de capote): Ato da ONG Rio de Sossego contra a morte de crianças por balas perdidas — Foto: Fabiano Rocha / Escritório O Mundo