O intento golpista fora alardeado desde o primícias de 2021, com o auge em setembro daquele ano. O bolsonarismo caminhou com um pé dentro da validade (leia-se disputa eleitoral) e outro buscando o caminho golpista. Falou disso inúmeras vezes, abordou 2018 uma vez que secção de uma fraude, mas que teria ficado impossível de sustentar oferecido o suposto volume de votos por ele obtido. Mas isso ocorreria em 2022, já que, segundo alardeou desde o retorno dos direitos políticos de Lula, o sistema elegeria o petista em 2022.
Esse caminho entrou em um quadro crítico em 2022. Numa primeira tempo e com pesquisas confirmando o nepotismo de Lula, ele seguiu na traço de denunciar o golpe. Na passagem de abril a junho, com pesquisas mais consistentes e regulares, os números dele melhoraram. Isso reforçou o caminho por dentro da validade.
A partir de junho o caminho foi disputado: de um lado defensores do caminho golpista e, de outro, alguns apostando na possibilidade de vitória.
Hipóteses sobre o golpe – primeira tempo: a definição pelo caminho eleitoral
1. Para isso, entraram em campo os planos do Paulo Guedes de uso absolutamente inconsequente do orçamento da União para fazer milénio e uma operações de impacto: aumento da base e valores do Auxílio Brasil, do Auxílio Gás, auxílio a caminhoneiros, empréstimos consignados (principalmente para beneficiários do Auxílio Brasil), rolagem dos precatórios de R$ 90 bi, etc., sem falar nos recursos para o Parlamento via orçamento secreto. Só para referir algumas.
2. As articulações para operações de redes sociais com recursos internacionais e base robusto deram a sua campanha uma ampla capacidade de disputar.
3. Essa aposta, que antes dividia opiniões, foi vitoriosa depois julho de 2022, com os primeiros resultados da gastança. A partir de julho, a aposta na via eleitoral foi hegemônica.
4. A tática deu evidente. A diferença com o Lula foi sendo reduzida, e a campanha ganhou vontade e força. O resultado do primeiro vez foi comemorado por ele: a política estava confirmando a correção tática.
5. A campanha do segundo vez foi possante e capaz de mobilizar mais de 70% dos votos em disputa, destinados aos outros candidatos no primeiro vez. Foi a primeira vez desde a instituição dos dois turnos que a Presidência não foi vencida por quem obteve a ampla maioria dos votos dos candidatos derrotados. Nas anteriores – Lula 1 e 2, Dilma 1 e 2 e Bolsonaro 1 – os votos do segundo vez foram disputados, e a ampla maioria – entre 60% e 80% – ficou com o vencedor. Nessa eleição ocorreu o inverso: Bolsonaro obteve 70% dos votos em disputa no segundo vez.
Segunda tempo: o impasse sobre o caminho do golpe
1. Depois a guião, o caminho do golpe se tornou a única possibilidade. E teria que ocorrer enquanto estivesse no governo.
2. A trama é sofisticada e começou na noite da apuração, com a convocatória para vigílias nos quarteis e locais das Forças Armadas (FFAA). A reação foi positiva: milhares começaram a ocupar a frente de quarteis e locais simbólicos das três forças, principalmente do Tropa.
3. Aparentemente o caminho do golpe foi sendo traçado: uma situação de caos em razão de conflitos entre os manifestantes golpistas e a esquerda. Mas isso não avançou: Lula comemorou a vitória e orientou uma posição pacífica e de não confronto. Não convocou atos, não respondeu com hostilidade, nem tratou dos temas. As referências políticas também não. E não houve o caos de atos se confrontando.
4. Com isso surgiu a demanda de edificar o caos. O “false flag” [bandeira falsa, em tradução livre do inglês] é um método idoso de legitimar conflitos e guerras. E isso exigiria uma extensão peculiar – os kids pretos, altamente capazes de operações dessa natureza.
5. O projecto todos conhecemos agora. Dependeria de uma coesão na cúpula das forças, já que na base e setores de comando intermediário isso seria facilmente obtido.
6. É provável que os desacertos do projecto do golpe (1), o quadro internacional desfavorável (2), com sucessivos reconhecimentos da lisura do processo e da vitória do Lula (3), finalmente conjugando com resistências pessoais – dentre elas a de Freire Gomes – comprometeram a realização do projecto de impedir a diplomação (projecto 1) e, sucessivamente, impedir a posse via caminho do caos > Garantia da Lei e da Ordem (GLO) > intervenções pontuais > golpe.
7. As variáveis jogaram um peso grande na desarticulação. A antecipação da diplomação em uma semana (19 para 12) foi uma delas, já que gerou um efeito de vestuário consumado e isso certamente – só a história poderá nos esclarecer – ajudou a resfriar o caminho golpista.
8. As forças civis – parlamentares, setores da mediocracia e figuras públicas acompanharam o processo cumprindo missões claras: ora era animar os atos e acampamentos; ora foi em denunciar as suposições sobre a fraude; ora em pressionar os setores da cúpula das forças em aderir, com destaque para a pressão sobre Freire Gomes e Batista Júnior, com destaque para ato na porta de mansão do Gomes, recados, pedidos de base dirigidos a ele, abordagens diretas (uma vez que a de Carla Zambelli) e outros.
9. Finalmente, com a decisão de fugir em debandada e gerar um clima inédito de posse sem passar a fita, alimentando uma narrativa de fraude e ilegitimidade, Bolsonaro entregou o governo e foi para a sombra.
Terceira tempo: o golpe seja lá uma vez que for
1. Com o engajamento dos kids pretos na trama, as dificuldades havidas não arrefeceram os ânimos golpistas.
2. A operação mudou de contexto e teria que ser realizada sem o governo, razão pela qual o desfecho ocorreu com grande concentrado na operação clandestina dirigida pelos militares e contando com a cooperação dos setores resistentes dos acampamentos e dos apoiadores – empresários, principalmente do agronegócio.
3. Nesse caminho o projecto definiu a data de 8 de janeiro. E estimulou todo o tipo de loucura, com atuação peculiar dos agentes para certificar o caos e o progresso das ações dependendo de um erro grosseiro do governo: a decretação da GLO.
4. Essa operação ocorre depois o fracasso do caminho golpista planejado para ocorrer em dezembro com o Bolsonaro no governo e buscando comprometer a diplomação ou, no limite, a posse. Fracassado, o projecto B foi esse: induzir o governo a cometer um erro inevitável, contando com a colaboração de setores supostamente de dentro do governo.
5. O resultado sabemos. O golpe passou a ser considerado com maior enfoque – ou quase somente – nos ocorridos em Brasília naquele sábado de janeiro.
6. Os fascistas nesse processo deram um tiro no pé!
7. O fragoroso fracasso resultou em prisões, uma CPI, inquéritos, processos e condenações. Mas os militares ficaram quase de fora. Esse tiro no pé arrefeceu a força da extrema direita, que só saiu dessa situação em razão da iniciativa do Silas Malafaia em convocar o ato de fevereiro. Depois isso o esforço em superar esse gravíssimo erro nesse momento é comprometido pelas apurações da PF no sindicância, culminando com o indiciamento do Bolsonaro e grandes figuras militares.
O resultado da apuração da PF do sindicância
1. O sindicância decorreu de documentos obtidos por norma judicial, em delações, nas apurações da Percentagem Parlamentar de Inquériro (CPI) e em pontas soltas de toda a trama.
2. As informações obtidas nas delações resultaram em fragilidades. Mauro Cid, o principal deles, mentiu e omitiu informações importantes. Mas o celular foi a maior nascente de provas até agora: grupos, mensagens excluídas, fotos etc. permitiram que a investigação avançasse para maiores responsáveis.
3. A nascente da investigação foi concentrada em figuras das forças – centralmente a delação do Cid, os depoimentos do Freire Gomes e Batista Júnior, deram o fio condutor. E resultou em maior ênfase no sindicância em mostrar no conjunto um soberania de militares indiciados.
4. Merece destaque para uma separação existente nesse campo: os militares não deixaram a meio nas mãos de civis em secção pela relação de crédito corporativa profunda, baseada no pânico e risco a vida, e secundariamente por não considerarem os civis hábeis condutores de operações dessa dificuldade. Isso talvez explique os poucos nomes civis e o de nenhum empresário, que certamente financiou – uma vez que já é sabido – e pressionou para o desfecho golpista.
5. Os nomes merecem destaque. É a primeira vez em anos – provavelmente em décadas – com uma apuração indicando responsabilidades de tantos nomes de comando das forças, principalmente da maior delas.
6. Mas impressiona a falta de nomes de parlamentares que compuseram a trama – uma vez que a própria Zambelli -, figuras do empresariado – uma vez que Luciano e outros – e de destaque uma vez que Ives Gandra, que teria sido o responsável do decreto da GLO. Claramente foi patrono do caminho da GLO e da sustentação ao recta das Forças de atuarem uma vez que efetivo poder moderativo com arrimo – na tese golpista – do item 142 da Constituição Federalista.
Cenários e desafios
1. O trajectória judicial do processo ainda tem nuances e variáveis que não nos permitem ter um quadro evidente dos tempos, atos e caminhos.
2. Mas, por conformidade e com um contexto das dimensões do caso, provável que a recepção do resultado do Sindicância Unificado ocorra com a recepção na íntegra das imputações, com alterações tópicas, e o processo seguirá para a instrução e julgamento.
3. Em resumo será um caminho exímio dos casos do 8 de janeiro em um ponto forçoso; dissemelhante dos anônimos, donas Fátimas e outros, nesse serão peixes graúdos – com destaque para comandantes e o Bolsonaro. A grande tendencia é que as forças reais do Brasil joguem duro para que o desfecho dos processos seja a partir dos seus interesses.
4. A disputa será incomparável com o que já conhecemos até cá com os exemplos do Mensalão e da Lava Jato, passando pelos “bagrinhos” do 8 de janeiro. Será um teste de queimada do nosso sistema de justiça e da capacidade dos juízes de suportarem todo tipo – e intensidade – de pressão.
5. Nesse quadro o STF deve lucrar protagonismo na “luta” contra o golpismo, em secção inevitável por ser uma luta nesse momento com centralidade no campo judicial, mas a questão é que isso pode ofuscar a luta política contra esses setores e suas ações golpistas.
6. Provável que no próximo ano será duro nesse tema. A torcida organizada do ministro Alexandre de Moraes acompanhando pela TV e esperando as sentenças condenatórias. Alguma coisa semelhante, guardadas as devidas proporções e diferenças – com destaque para as diferenças quanto a observância da validade, com os julgamentos do Mensalão e Lava Jato. Ou seja, com o protagonismo do Judiciário.
7. Muito provável que o bolsonarismo busque um caminho de denúncia do processo (provável que copiando o que foi a luta do Lula Livre), de base social e iniciativa política, sem perder de vista que o líder não aceitará o cárcere. O que é muito provável que ocorra é o Bolsonaro buscando uma embaixada para gerar um campo de luta ensejo e de denúncia contra o processo, retomando a centralidade política, a iniciática e o oração antissistema.
8. O repto será grande para enfrentar esse quadro. O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem base internacional, recursos abundantes, canais de notícia de grande impacto (redes sociais) e buscará transformar o processo em um julgamento político – para, com isso, disputar o lugar do perseguido político, submetido a um processo marcado por ilegalidades e que não restou alternativas a não ser a rebeldia.
9. A rebeldia segue sendo disputada pela esquerda e direita (real e demagogicamente, respectivamente). E o próximo período será de lutas importantes, determinantes, para o que será do Brasil nas próximas uma ou duas décadas.
10. A esquerda precisará encontrar um caminho que seja capaz de fazer a denúncia do fascismo e do golpismo; combinada com ação de massas – nas ruas e nas grandes cidades; mostrando que essa disputa no fundo é de projetos de Brasil: de um lado o projeto do entreguismo, desconstrutor das bases nacionais e que projeta o horizonte no caos e barbárie. De outro, um campo que que disputar o horizonte afirmando um projeto vernáculo, popular e democrático das amplas maiorias, construtor de uma teoria de país marcado pela efetividade da democracia, da amplitude de todas as inclusões sociais, baseada no sonho, na esperança e na valorização da vida.
11. Que esse cenário abra, definitivamente, um tempo em que a disputa política seja ensejo e clara de projetos de país. E saibamos gerar um caminho para estabelecer os padrões da sociedade do horizonte, demonstrando que nesse momento o repto é enfrentar, desmantelar e derrotar a força política e social fascista. Tarefa de primeira hora, construtora de melhores condições para enfrentar os enormes desafios nacionais.
* Ronaldo Pagotto é membro do Juízo Executivo do escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, legisperito e militante do Movimento Brasil Popular
** Nascente é um item de opinião e não necessariamente expressa a traço editorial do Brasil de Roupa
Edição: Geisa Marques