Evitar a instalação de quatro hidrelétricas no Rio das Mortes, empreendimento do grupo Bom Horizonte, da família Maggi, que figura entre as mais ricas do mundo pela revista Forbes. E tal qual licenciamento, apesar de questionado por comunidades e Ministério Público Federalista (MPF), avança na Secretaria de Estado do Meio Envolvente do Mato Grosso (Sema). Esta é, atualmente, a principal guerra dos indígenas do povo Xavante, no estado da região Núcleo-Oeste.
A gigante do setor agropecuário é da família do ex-ministro da Lavra do governo Temer, ex-governador do Mato Grosso e bilionário Blairo Maggi (PP), e quer erigir Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) na cabeceira do Rio das Mortes e em um dos seus afluentes, o rio Cumbuco.
As águas tal qual curso pretendem barrar nascem na cidade de Campo Verdejante (MT) e desaguam no rio Araguaia. Atravessam as Terras Indígenas (TIs) Sangradouro, Volta Grande, São Marcos, Areões e Pimentel Barbosa, do povo Xavante, e a TI Merure, do povo Bororo.
No último 16 de outubro, lideranças indígenas foram uma vez mais até a sede do MPF em Barra do Garças (MT) expressar que são contra o empreendimento, que os impactos serão catastróficos e que o processo para a instalação está referto de irregularidades. Entre elas, alegam a violação ao recta de consulta prévia, livre e informada das comunidades afetadas, exigência da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da qual o Brasil é subscritor.
O mesmo MPF já tinha soltado um documento em fevereiro de 2024 recomendando, entre outras providências, a suspensão do licenciamento ambiental até que os povos Xavante e Bororo fossem efetivamente ouvidos. A recomendação foi ignorada.
Ao Brasil de Indumento, a Secretaria do Meio Envolvente do governo de Mauro Mendes (União) informou que não acatou a recomendação “por considerar que o processo segue os trâmites legais”. Em dezembro do ano pretérito a pasta, chefiada pela advogada Mauren Lazzaretti, emitiu a licença prévia de uma das PCHs, a Entre Rios. Para esta, só falta a licença de instalação.
“A Sema nos tratorou”, resume Róptsudi Rãiwari, Xavante da lugarejo São Marcos, integrante da Federação dos Povos Indígenas do MT e da Associação de Proteção Social Indígena e Recuperação Ecológica (Apsire).
Apesar de as quatro barragens, se instaladas, afetarem muro de 20 milénio indígenas que vivem com o rio, o grupo Bom Horizonte só considera – no estudo e relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) e nas consultas que alega ter feito – a TI Sangradouro, situada a 6,8 km da PCH Entre Rios. A empresa se apoia na Portaria Interministerial nº 60, de 2015, que estabelece o perímetro de 40 km de grandes obras para definir áreas potencialmente impactadas por empreendimentos.
“Mas o rio é vivo”, diz Róptsudi, com a paciência de quem se vê obrigado a explicar obviedades. Ignorando a segmento da mesma portaria que diz que o parâmetro pode mudar “em função das especificidades da atividade ou do empreendimento e das peculiaridades locais”, o grupo Bom Horizonte tem ignorado, também, a exigência de participação no processo dos indígenas das TIs São Marcos, Areões, Pimentel Barbosa e Merure.
“O não-indígena só entende na escrita, na pesquisa. Mas nós, povo Xavante, reconhecemos a sabedoria da natureza, a sabedoria do Rio das Mortes. Sem o Selado, sem o Rio das Mortes, ninguém vai sobreviver”, avisa Bernardina Renhere, parteira e coordenadora das mulheres na Associação Xavante Warã.
A entidade de Bernardina é uma das que protocolou uma representação no Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Sema e Funai reivindicando que o licenciamento seja federalizado, ficando a missão do Ibama. Procurado pela reportagem, o Instituto respondeu que “não intervém em processos que não sejam de sua cultura”.
Blairo Maggi tem bom trânsito nos governos do MT e federalista, tendo se reaproximado da gestão petista mesmo depois ser ministro do governo que destituiu Dilma Rousseff (PT). Em recente enunciação elogiosa ao governador Mauro Mendes, o magnata do agro brincou que já o lançou à Presidência. Já no Executivo federalista, Blairo Maggi foi influente na indicação do agropecuarista Carlos Fávaro (PSD) para comandar o Ministério da Lavra.
“Um gestor público não pode fazer zero que não seja previsto em lei, enquanto que no setor privado nós podemos fazer tudo que não seja proibido por lei”, declarou Blairo certa vez em entrevista à Revista Forbes.
Em setembro, uma reunião de ministros da Lavra de países do G20, encabeçada por Fávaro, aconteceu em um resort de luxo na Chapada dos Guimarães que tem entre seus sócios André Souza Maggi, rebento de Blairo.
“Os anciões avisaram”
Róptsudi Rãiwari, nascido em 1982, era pequeno e já ouvia os anciões falarem das ameaças dos brancos ao Rio das Mortes. Segundo ele, ao menos desde a dez de 1960 o seu e outros povos se organizam para proteger as águas.
“Todas as noites, por volta das 19h, tinha encontro de jovens, mulheres, anciões, cá no meio da lugarejo. E depois das danças, os caciques falavam, comentavam dos lugares onde tinham ido. Contavam das reuniões nas outras aldeias, da luta em resguardo do rio Xingu para não sobrevir a Usina de Belo Monte“, lembra Róptsudi.
A geração dos seus pais foi vitoriosa, em 2013, na luta contra a Usina Hidrelétrica Chuva Limpa que ameaçava a cascata da Fumaça. Hoje o lugar, que borda a TI São Marcos, é Superfície de Preservação Ambiental.
“‘Um dia vai chegar esse problema cá nessa terreno'”, Rãiwari lembra de ouvir os caciques durante sua puerícia. “‘Vocês, quando crescerem, têm que tomar zelo, permanecer de olho, porque a luta não vai parar'”, relata. “É a fala deles, virou veras agora.”
Foi em 2019 que o grupo Bom Horizonte chegou à cidade de Primavera Leste (MT) e, com ele, esta veras. Ali fizeram uma reunião informativa com os Xavante sobre a pretensão de instalar as quatro PCHs, chamadas Entre Rios, Vila União, Cumbuco e Geóloga Lucimar Gomes. “A família dos Maggi já destruiu o Selado. Agora querem destruir nossos rios”, define Róptsudi.
Tentativa de subdivisão
Já em 2020 o povo Xavante soltou uma moção em que diz que “desde o primeiro momento” em que “o empreendedor” chegou na TI Sangradouro (a única a qual se dirige), “trabalha na subdivisão de nosso povo. Essas reuniões são espaços de cooptação e exclusão das posições contrárias; e os documentos produzidos não expressam o que de trajo aconteceu nos encontros”.
Durante a pandemia, com o esteio do Sindicato Rústico de Primavera do Leste, foi fundada nesta TI uma cooperativa de grãos para atuar em “parceria agrícola” com sojicultores – entre eles José Nardes, irmão de um ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). “A estratégia dos empresários de dividir o nosso povo resultou em que alguns membros da cooperativa já estão ao lado dos empreendedores”, relata Róptsudi em um item. A produção de soja na TI foi embargada em 2022 pelo Ibama, por desmatamento proibido.
“É uma manipulação dos empresários para colocar na cabeça dos Xavante que vão ter vida de luxo. Mas o resultado não tem. Eles estão sonhando falso, é ilusão na cabeça deles. Blairo Maggi é bilionário de Mato Grosso, tem muitas empresas e fazendas. Eles falam porquê os políticos que vão na lugarejo e só falam, na prática não fazem”, avalia.
“Falam que vai ter hospital na lugarejo, que os indígenas vão receber valores se aceitarem a construção da usina. É pataratice, depois viram as costas. Isso é estratégia deles para tomar as nossas terras”, sintetiza Róptsudi Rãiwari.
Em nota, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) ressalta a “ilegitimidade política do procedimento de aparente ‘consulta’ que o empreendedor tem transportado junto às bases indígenas”.
“Não houve nenhuma oitiva indígena realizada até o momento e as reuniões informativas feitas na T.I. Sangradouro/Volta Grande foram marcadas justamente pelas denúncias de esvaziamento, cooptação, desinformação, ocasionando, inclusive, confrontos entre indígenas favoráveis e contra aos empreendimentos”, diz a ABA.
A associação científica denuncia, ainda, a inexistência de “um protocolo de consulta próprio pactuado entre os Xavante e tampouco entre os Bororo”, considerando que, assim, o grupo Bom Horizonte “manipula” a Convenção 169 da OIT “em interesse próprio”.
Alexandre*, antropólogo que acompanha os Xavante, questiona a forma porquê têm ocorrido os processos de licenciamento ambiental. “É meramente formal. Cumpriu a EIA /RIMA, fez a audiência pública, mas se as pessoas vão na audiência e dizem ‘não queremos, não aceitamos’, não importa o que seja dito. Eles só dizem, ‘pronto, a período foi cumprida'”, critica.
“A Funai também é envolvida nisso. Tem que sancionar o Estudo do Componente Indígena (ECI), estudo esse que não foi feito, não foi entregue. Mesmo assim, foi aprovada a licença prévia. Que está, portanto, irregular”, pontua o antropólogo.
Questionada, a Sema diz que “foi informada pela Funai que houve consulta” aos povos indígenas sobre o empreendimento. “Ela foi apresentada no Termo de Referência Específico e consta no projecto de trabalho a realização de uma reunião quando os indígenas foram consultados e aprovaram a instalação das PCHs.”
A Secretaria de Meio Envolvente do governo do Mato Grosso alega, ainda, que o Estudo de Componente Indígena “consta no projecto de trabalho apresentado pela Funai”: “A sua realização foi aprovada pelos indígenas e apresentada durante uma reunião em junho de 2023”.
Já a Funai, no entanto, nega. A autonomia cita esta reunião de junho porquê o momento em que “foi autorizado o ingresso em terreno indígena da equipe de consultoria contratada pelo empreendedor para realização dos trabalhos de campo”. Destaca, porém, “que o Estudo do Componente Indígena (ECI), de responsabilidade do empreendedor, está em período de elaboração”.
“Considerando que ainda não foi provável atestar a viabilidade do empreendimento do ponto de vista do Componente Indígena, haja vista que o estudo está em elaboração, foi recomendada ao órgão licenciador a suspensão da Licença Prévia emitida para PCH Entre Rios, assim porquê a suspensão de eventuais licenças ambientais concedidas para as PCHs Geóloga Lucimar Gomes e Cumbuco, pelas mesmas razões”, informa a Funai.
“Sem chuva, vamos todos morrer”
“Para nós o rio é tudo”, explica Róptsudi Rãiwari, se referindo ao Öwawe, ou “rio grande”, porquê os Xavante o chamam. Antes da chegada massiva dos brancos, ele era divulgado porquê Rio Manso. Contam os Xavante mais velhos que os indígenas sabem nadar com o rio, atravessá-lo a braçadas. Em certa ocasião, colonizadores tentaram fazer o mesmo e morreram. Veio daí o novo batismo.
“Nosso povo se banha ali desde cedo para crescer salubre. Nós bebemos, nós banhamos, nós consumimos os peixes e as medicinas tradicionais”, elenca Bernardina Renhere. “Nele a gente faz nosso rito de passagem, rituais porquê a furação de ouvido”, complementa Rãiwari.
“Quando a mulher ganha bebê, enterramos o ponta [cordão umbilical] dentro de um buraco, cobrimos com a folha. Quando acontece o falecimento, o cabelo coloca na borda do rio, vai cavar um pouco. É a regra de luto da nossa cultura, ainda existe muito poderoso”, conta Bernardina. “Sem chuva, nós vamos morrer”, resume. “Por isso nunca vai completar a nossa luta, sempre vai continuar”, garante a parteira Xavante.
“Essa grande bacia hidrográfica – que além do grande rio, sai em muitos córregos – é o que mantém toda a vegetação e a fauna da região. E o povo Xavante é um povo caçador, coletor. Com o progressão do agronegócio, essas matas e o Selado vão sendo postos aquém e tudo vira monocultura”, conta Alexandre. Em privativo de soja e algodão, as principais commodities exportadas pelo grupo Bom Horizonte.
“Os empreendimentos desta empresa estão sempre ao lado de TIs. No oeste do estado, fizeram instalações em volta das terras Nambiquara, Pareci, Enawenê-nawê. E agora a estratégia de capitalização do grupo é prosseguir para o leste do Mato Grosso, sobre os Xavante”, avalia Alexandre.
Segundo o antropólogo, pressões diante de desastres ambientais e críticas aos impactos da Usina de Belo Monte fizeram aumentar as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) no lugar das grandes.
“Neste caso por exemplo, serão quatro. É também maléfico, alaga em diferentes pontos. A PCH da licença prévia prevê uma represa com 5 km de enchente. Não tem por onde os animais migrarem. Ao volta é tudo soja em Primavera do Leste”, descreve.
“Portanto não é somente a chuva. A chuva é a requisito de vida para todo um ecossistema. Essa visão que relaciona a chuva com a manutenção de todas as formas de vida, para os Xavante, é óbvia. Mas o varão branco é muito moroso, ele não entende, apesar de todo o exposição ecológico circulando há décadas”, avalia Alexandre.
“Toda essa discussão de que os rios amazônicos estão secando, as pessoas precisam olhar o que acontece no Selado. É o bioma onde estão as nascentes dos rios, tantos os amazônicos, quantos os que descem, no sentido bacia do rio Paraná e Paraguai”, exemplifica o antropólogo.
“Sem rio, não vai subsistir Selado. Sem rio, não vão subsistir os animais. Sem rio, nós, seres humanos, não vamos conseguir viver. Todos nós, inclusive você, precisamos de chuva para tomar”, afirma Rãiwari. Com as PCHs no Rio das Mortes, avalia o indígena, “tudo vai secar depois de cinco ou oito anos. Para onde que nós vamos? E nossas futuros gerações que estão vindo, porquê eles vão viver?”
As famílias Maggi e Scheffer
O grupo Bom Horizonte foi fundado pelos irmãos Elusmar e Eraí Maggi Scheffer, primos de Blairo Maggi. Em 2016, ao lado da Amaggi – criada pelo pai de Blairo, André Antônio Maggi, cujos negócios lhe deram a epíteto de “rei da soja” – foram apontados pelo MPF porquê envolvidos em um dos maiores esquemas de desmatamento da Amazônia. O caso investigava a devastação de 300 km quadrados entre 2012 e 2015.
De negócio com apuração do De Olho nos Ruralistas, a suspeita era que a Amaggi e o Bom Horizonte teriam transferido R$ 10 milhões para financiar um grupo de grileiros e desmatadores, comandados por Antônio José Junqueiro Vilela Rebento. Eraí Maggi Scheffer chegou a ser multado por devastação de flora na Herdade Iguaçu, em Rondonópolis (MT).
Anos antes, em 2008, os irmãos fundadores do Bom Horizonte foram processados por manter, segundo fiscalização do Ministério do Trabalho e Ocupação (MTE), 41 trabalhadores em condições análogas à escravidão na Herdade Vale do Rio Verdejante, na cidade de Tapurah (MT). Em 2013, o juiz Jeferson Schneider, da 5ª vara da Justiça Federalista em Mato Grosso, os absolveu.
“Se você olhar lá no planta do Bom Horizonte, você vai ver a estratégia de capitalização dele. A geração de vontade é um negócio pequeno perto do mercado de exportação de grãos deles. Pensando na economia do Bom Horizonte, a estratégia de matar os rios implica em tirar as condições de viver ali e na expulsão dos indígenas de suas terras”, avalia Alexandre.
O Brasil de Indumento entrou em contato com o grupo Bom Horizonte e não recebeu nenhum retorno até o fechamento da material. Caso a empresa queira se posicionar, o espaço segue desobstruído.
O rio veio do corpo de um Xavante
Na cosmologia Xavante, o rio é um avoengo. E compõe o mito fundador do povo nos dois clãs: Öwawe (rio grande) e Poreza’õno (girino). Perguntado sobre a história do Rio das Mortes, o indígena Silvério Tserebu’ra Tserenhib’ru respondeu só depois de consultar um ancião da lugarejo.
Na antiguidade, dois adolescentes (parinai’á) foram divididos nestes dois clãs. Ajoelharam e pediram a Deus pela alimento nativa. Foram eles os criadores do Selado. Assim nasceram os pés de bocaiuva, batata, buriti, coco. Colheram e foram para mansão. Em poucos minutos, os padrinhos dos adolescentes viram que as frutas se encheram de bactérias.
“No outro dia, o povo Xavante discutiu em uma parlamento no meio fazer uma queimada. Os dois adolescentes acompanharam”, narra Silvério. “No término da queimada, os caçadores sentiram grande sede. E não tinha chuva no lugar. Os adolescentes observaram os caçadores sentirem fraqueza e resolveram pedir chuva. Um parinai’á, clã de Öwawe, deitou olhando o firmamento e desmaiou. Em poucas horas, o sangue saiu dos dois buracos do seu nariz. Derramou no soalho e se transformou em chuva”, conta.
“Quando ele acordou, viu um rio manante. O outro juvenil, do clã Girino, gritou ‘cá tem chuva, correnteza, venham matar a sede’. Os caçadores foram no rio e beberam uma chuva novidade”, relata Tserenhib’ru.
“Assim termina a história do Rio das Mortes”, diz Silvério. “Por isso é importante o öwawe permanecer quieto. Ele tem respiração. Está pedindo socorro para que nós, os Xavante, o defendamos”, afirma.
A estratégia atual, conta Róptsudi Rãiwari, “é fazer as nossas vozes e manifestações, junto com o MPF, barrar esse processo de licenciamento. Tem que voltar do início e fazer a consulta dentro da nossa terreno”.
“Agora, se as empresas foram lá jogar o cimento na chuva”, diz Rãiwari, “não vamos recuar: nós vamos para lá”.
* Nome trocado para a preservação da natividade.
Edição: Nicolau Soares