27 de setembro é dia de consumir caruru na Bahia. A tradição do Caruru de Cosme e Damião ultrapassa as religiões, é uma grande revelação da cultura popular baiana, tornada agora patrimônio intangível do estado. Foi publicado hoje (27), no Quotidiano Solene do Estado a sanção do governador Jerônimo Rodrigues à decisão do Recomendação Estadual de Cultura pela patrimonialização da sarau.
Na história hagiográfica dos santos gêmeos, Cosme e Damião, não consta que tenham qualquer dia comido caruru e vatapá. Mas na Bahia, todo setembro é necessário oferecer aos santos mesa farta de comidas de terreiro, com a presença de muitas crianças.
Isto porque, em tempos de escravização, essas pessoas sequestradas de África e proibidas de manter suas tradições culturais e religiosas desenvolveram estratégias para subverter proibições. Daí passaram a invocar por nomes portugueses suas figuras sagradas. Nesse processo, que acostumamos invocar de “sincretismo religioso”, orixá Ibeji, duas crianças gêmeas, passou a ser chamado de Cosme e Damião.
Mas, na Bahia, não precisa ser nem católico nem do candomblé para cultivar devoção pelos santos gêmeos e oferecer sarau a eles em setembro. A comida oferecida varia muito de família para família. Há os sempre presentes caruru e vatapá, e pode ter peixe ou xinxim de penosa, farofa de dendê e de mel, feijoeiro fradinho e feijoeiro preto, milho branco, acarajé, abará, ovos cozidos, cana de açúcar, banana da terreno frita, inhame, etc. Cada um desses sendo comida preferida de um orixá a quem se pretende deleitar.
A tradição manda que uma primeira porção seja servida à imagem de Cosme e Damião. Logo em seguida, sete crianças são convidadas a consumir — por isso a sarau também é conhecida porquê Caruru de Sete Meninos. Só depois, os demais convidados e convidadas podem ser servidos. Nesse dia, convém que a pimenta não seja servida, para atender a um pedido de Ibeji.
Fé para além das religiões
Em setembro, não necessariamente no dia 27, muitos terreiros e famílias do candomblé oferecem seus carurus de sete meninos. Mas a sarau é maior que a religião. Muita gente católica ou que não está ligada a nenhuma religião também participa por tradição.
É o caso de Flávio de Pinho, de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo. Embora não seja uma pessoa religiosa, há dez anos oferece o Caruru de Cosme e Damião em sua lar em um povoado da cidade.
“Uma das minhas irmãs sempre deu caruru. Em 2012, eu estava passando por um momento crítico da vida, fui no caruru dela e ela sugeriu incendiar uma vela pra São Cosme e Damião, acendi, mesmo descrente, e pedi Silêncio. No ano seguinte consigo comprar o lugar que moro hoje, no mês de setembro, e nesse lugar tem uma imagem de São Cosme e Damião na parede, que estava ali desde sempre! E hoje é onde tenho a sossego que pedi. Desde 2014 dou caruru”, conta.
Nessa tradição, embora haja um notório ritual a ser seguido, não há espaço para solenidades. Thais Ferreira, mestra em Ensino, Filosofia e História das Ciências, teórica da sustento e colunista do Brasil de Vestuário Bahia, lembra das festas de sua puerícia porquê espaços de risadaria e pequenas transgressões infantis, que não eram corrigidas pelos adultos.
“Eu tenho a felicidade gigante de ter desenvolvido todos os anos participando de uma roda de Caruru de Sete Meninos. Era uma coisa muito formosa, mas eu tenho memórias muito engraçadas. Eu acho que que esse espírito de párvulo vem muito possante”, lembra. Thais conta que segue participando dos carurus, agora ajudando na produção, e o espírito dos erês também está presente nessa lanço, entre adultos.
“Eu acho que o caruru transfere essa alegria dos erês, desses espíritos de párvulo, que acaba contaminando a gente. E a gente tem essa coleção de memórias incríveis por conta da sarau e, sobretudo, por conta da comida”, diz.
Para seguir lembrando – e comendo
Uma coleção de memórias tão importante para a cultura baiana, que a sarau, a partir de hoje, é considerada Patrimônio Intocável da Bahia. Um título que, no entender de Thais Ferreira, tem a ver com valorização e preservação da sarau no contexto cultural baiano e brasílico.
A patrimonialização da sarau pode contribuir também para combater o processo de apagamento da presença de culturas e religiões afrobrasileiras porquê meio da sarau popular. Thais aponta que essa pode ser uma boa utensílio de combate ao preconceito religioso tão possante contra as religiões de matriz africana.
“Quando existe esse reconhecimento, de a sarau de santo ser um patrimônio intangível, existe um saudação ao seu cunho religioso, ao seu cunho sincrético. A gente precisa falar cada vez mais da relevância das religiões de matriz africana e entendê-las porquê forma de reforço da nossa cultura”, afirma.
Para que a tradição siga viva, no entanto, a patrimonialização do muito intangível é insuficiente. Flávio de Pinho demonstra sua preocupação com uma outra questão mais prática: as gerações mais novas da família não estão aprendendo a preparar as comidas e os rituais da sarau.
“Essa coisa das gerações mais novas tem me preocupado muito. Eles participam, mas não estão cozinhando, não estão querendo aprender. Eu tenho repetido isso dentro da família. Em Santo Amaro, muitas famílias ainda fazem Caruru, mas vejo que são pessoas mais velhas…”, conta.
Para Thais, aprender a fazer essas e outras comidas é fundamental para a preservação de uma identidade cultural baiana. “Porque quando a gente ensina e quando a gente aprende essa prática de fazer um iguaria, a gente também está aprendendo a mourejar com significados que são profundos, que estão relacionados à memória coletiva, aos saberes ancestrais e à coesão social”, explica.
Hoje, em diversas casas de toda a Bahia, será servido no prato a Cosme e Damião e os Sete Meninos muito mais do que comida.
Nascente: BdF Bahia
Edição: Gabriela Amorim
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