A mais famosa personagem dos quadrinhos argentinos está completando 60 anos. E segue conosco, questionando porque ainda fazemos tão pouco.
Mafalda, a rapariga invocada, perguntadeira e persistente, caracterizada pelo cabelo revolto, vestido encarnado e laço mariposa chega a seis décadas de sua primeira publicação. Apesar de seu papai, Joaquim Salvado, o Quino, a ter produzido por exclusivamente uma dezena (entre 1964 e 1973), a guria seguiu ativa perambulando em meio as nuances da história e, principalmente, às peleias dos povos.
Desaforada, bailou em meio a diferentes ciclos de autoritarismo – alguns bastante violentos, outros mais violentos ainda, porque todo autoritarismo o é – alegorizando sopas e cassetetes para ensinar a influência de se fazer perguntas (mesmo quando é transe perguntar).
Schulz e seu Charlie Brown já haviam quebrado a teoria de que as tiras ditas cômicas tinham uma certa “obrigação” de fazer rir. A introspecção já era uma nuance que interessava aos leitores de quadrinhos seriados na estação. Se “fazer pensar” não era um tanto novo, talvez o “incomodar”, o “cutucar”, o “movimentar da zona de conforto”, o “colocar o dedo na ferida” que Quino traz com Mafalda sejam as novidades a se indicar ali.
Aliás, os quadrinhos argentinos têm muitas referências a esse cronismo cotidiano, mas deixemos esse tema para outro escrito, noutro momento. Porque logo precisaremos redigir cá também sobre Oesterheald e o seu Eternauta.
Voltemos a Mafalda. A rapariga foi parida para ser a pequena propaganda de uma máquina de lavar roupas da marca Mansfield, cuja campanha foi cancelada pelos executivos. Se não serviu para ser símbolo de consumo, caiu com sublimidade uma vez que símbolo de questionamento aos padrões burgueses capitalistas, ao status quo dominante de seu tempo (e dos tempos que viram depois do seu).
Erguia-se desde a Argentina, a “voz” de uma rapariga de 6 anos de idade que se tornaria uma improvável anti-heroína mundo afora com suas falas ingenuamente ácidas e agudamente inconformistas. Sob o dissimulação da tradução da puerícia, tocou em temas sociais espinhosos, deu pitacos certeiros na geopolítica, pontuou preocupações sociais urgentes e questionou os adultos que estavam ao lado de fora da tira porque permaneciam silentes. Aliás, observe, uma vez que continua nos fazendo a mesma pergunta.
Quino parou de publicar Mafalda depois de uma dezena de tiras diárias. Dizia que havia um risco sério de repetir-se. Hoje podemos compreender. Os ciclos históricos, de manifesto modo, comprovaram-se incomodamente circulares, inclusive em seus erros, violações e violências. Mafalda, porém, não parou. Apropriada pelo povo, seguiu nas ruas, ressignificada de diversos modos. Tornou-se ícone feminista, ganhou cores de diferentes pautas progressistas, emprestou seu inconformismo às mais diversas causas contra-hegemônicas mundo afora.
Nessas apropriações “não-autorizadas” pelos detentores dos direitos de publicação da personagem (mas seguramente muito autorizados pelo ser que habita o imaginário coletivo dos povos), não é difícil encontrar Mafalda personificando a petiz sem-terrinha no Brasil enfrentando os latifundiários em procura de um pedaço de pavimento para plantar suas roças e suas esperanças; ou lá para os lados do Oriente Médio, trajando keffiyeh, uma vez que petiz palestina de fundíbulo na mão contra-atacando o tanque de guerra do tropa atacante em resguardo de sua pátria; ou nos dias de hoje, na sua Argentina, de mãos dadas com las Madres de la Plaza de Mayo exigindo respostas e justiça por seus filhos assassinados.
A história, antes de ser escrita, contada ou interpretada, acontece. É dinâmica. É tempo presente. Se somos leitores do ontem, somos personagens do agora. Certa vez Quino foi questionado uma vez que seria o porvir de Mafalda se a rapariga tivesse desenvolvido, se teria apanhado o sonho de ser tradutor da Organização das Nações (ONU) para assim ajudar a mediar os conflitos no mundo e compreender a sossego na Terreno. Respondeu que se Mafalda tivesse desenvolvido, provavelmente estaria entre as listas de nomes assassinados e desaparecidos pelas ditaduras argentinas. A resposta, dura em sua origem, alinha a influência de a pequena e incômoda rapariga seguir presente a atuante junto conosco, seguir rebelde para além dos contratos de sua editora, para além da temporalidade de seu papai (que nos deixou em 2020), para além de nossas próprias conveniências e lugares de conforto.
Repito o que escrevi há dez anos: Mafalda segue conosco, cada dia emitindo novos olhares sobre esse tempo cinzento no qual convivemos, aprendendo com o pretérito para ter o recta de sonhar com um porvir melhor. Paul Ricoeur ensinou de forma pertinente: nem sempre a traço que divide história e ficção é evidente. Trata-se, em muitos momentos, de um alinhavo constituído por duas linhas, compondo pontos que se sobrepõem, onde um campo permeia o outro.
Quiçá te demos, Mafalda, a resposta que espera de nós. Com palavras e com movimento!
* Marcos Antonio Corbari é jornalista e participador popular, vinculado ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e à Via Campesina. Rabi em Literatura, em sua dissertação teve Mafalda uma vez que um dos personagens analisados.
** Leste é um cláusula de opinião e não representa necessariamente a traço editorial do Brasil de Veste.
Duas sugestões para comemorar os 60 de Mafalda lendo:
– Uma leitura indispensável para quem não conhece Mafalda é Toda Mafalda, publicada no Brasil pela editora Martins Fontes. Muito fácil de encontrar através de qualquer buscador na Internet e em livrarias físicas. Para quem já é leitor de Mafalda e quer se aprofundar, sugiro as edições publicadas na argentina e em Portugal, que trazem bastante material extra, com textos, entrevistas, artigos e ilustrações que permitem uma maior inserção no universo da personagem e do responsável. O valor é salso, mas vale cada centavo investido, independente da versão que você escolher!
– Entre as publicações que chegaram alusivas aos 60 anos da personagem destaco Universo Mafalda, publicado pela Editorial Lumen, por enquanto disponível exclusivamente em espanhol. No Brasil você consegue através do site da Sur Livro. O livro traz depoimentos, fotografias, análises de temas e informações importantes sobre o contexto histórico e social do período de publicação de Mafalda. Na Sur Livro também está disponível o livro infantil Quino para Chicos y Chicas, em que Mafalda apresenta seu responsável para os pequenos leitores na mesma linguagem da coleção anti-heróis e anti-princesas.
Manancial: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo
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