Ainda estou cá, escrevo, na América Portuguesa dos Trópicos, sob o impacto fílmico de Walter Salles. Quiçá, digito palavras em torno do primeiro filme que retoma a memória dos “anos de chumbo” para lembrar que ainda estamos cá ameaçados pelo horror do golpe de Estado e pela descarga brutal de violência que advém, necessariamente, depois dele. Foi assim no Estado Novo e na República Militar, não há razão para ser dissemelhante no tempo presente. Tal porquê a experiência fascista europeia, não há porquê, de boa-fé, negar os fatos e a memória deles com narrativas obscenas de guerra cultural e prenúncio comunista. A Percentagem da Verdade inventariou com depoimentos dramáticos e contundentes, além da farta documentação, o óbvio: depois os golpes contra o Estado de Recta ergue-se, rapidamente, uma indústria do terror que tritura corpos e almas. Se somos verdadeiramente patriotas, devemos odiar o golpe e as ditaduras que direcionam as armas de resguardo vernáculo contra o próprio povo. Certamente, é o único ódio que cabe ao patriota.
É, sem incerteza, o filme que evoca a dor e o desespero da família Paiva para mencionar antes o presente do que o pretérito brasiliano. Finalmente, o golpe é uma narrativa vivenciada nas ruas, nos acampamentos em espaço militar, nas redes socias, nas investigações da Polícia Federalista e no Supremo Tribunal Federalista. Portanto, é incontornável, apesar do negacionismo golpista, que evidentemente não irá registrar honestamente sua existência. O golpista é por sua própria natureza um hipócrita dissimulado.
Cabe aos democratas a resguardo da democracia, ou seja, de nossas liberdades políticas e individuais. A experiência imagética na sala de cinema nos afeta a pensar no limite da prenúncio às instituições democráticas. Ele advém, basta ler atentamente fatos e documentos, do interno do Estado. É o sono das instituições que produz e reproduz monstros, ou melhor, os engenheiros do terror. Eles são, majoritariamente, funcionários públicos. O mal – que corrompe a ordem pública e instaura a violência ordinária contra os cidadãos – é o burocrata que nas democracias usa e abusa do poder, atropelando artigos constitucionais, sem qualquer punição rigorosa. É o traidor da Constituição de hoje, o horizonte verdugo da democracia.
O filme Ainda estou cá é pedagógico para a cidadania, porquê as tragédias gregas da antiguidade. Ele descreve, delicadamente, no limite do provável, o contexto dominador do regime militar dos anos 1970, a partir da violência estatal descarregada sobre a família Paiva. Agentes públicos, não punidos pelo Estado brasiliano, mediante ordem, obviamente, destruíram o panelinha afetivo de uma família de classe média da cidade do Rio de Janeiro, com o uso de terror psicológico e físico.
O corpo de Rubens Paiva, brasiliano e democrata, desapareceu, simplesmente, desapareceu. Antes de ser brutalmente seviciado e assassinado por funcionários públicos da resguardo vernáculo. A família de Rubens Paiva teve sua logística totalmente afetada, sua esposa teve que rapidamente assumir a vanguarda de sustentação econômica do lar. Ainda sob efeito emocional da morte e do terror. Há uma cena seminal de Eunice Paiva que nos auxilia porquê metáfora de resistência. Depois cinco longos dias e noites nos porões da ditadura, ao chegar em morada, preferiu, antes mesmo do reencontro e do afeto familiar, tomar prolongado banho a termo de limpar seu próprio corpo do esgoto imundo da repressão do Estado. Nessa perspectiva, a sociedade brasileira deve fazer o mesmo, isto é, banhar-se, profundamente, a termo de limpar o país de sujeira fétida do autoritarismo ainda impregnada no corpo pátrio.
Qual foi o transgressão? Qual foi a data do julgamento que lhe condenou à pena capital? Houve recta à resguardo? Em inteiro, depois o golpe, os Atos Institucionais, subverteram, além da ordem, os próprios acontecimentos. Para o Estado dominador, Rubens Paiva desapareceu, assim porquê por feitiçaria macabra. Somente em 1996, no Estado Democrático de Recta, com a Lei dos Desaparecidos, foi emitida a diploma de óbito do deputado cassado e assassinado pela ditadura militar. A história de vida da família Paiva, também a de muitos brasileiros, registra um pretérito lúgubre que, infelizmente, não passa, porque ainda estamos cá sob a prenúncio do golpismo.
É preciso declarar ao infinito, a derrubada dos muros que salvaguardam a democracia, não é uma narrativa abstrata, fruto de delírio ideológico, pois sabemos muito muito o que representa, o filme deve atuar pedagogicamente porquê alerta às instituições democráticas e aos verdadeiros patriotas. O povo brasiliano precisa imaginar o mesmo grito democrático de Ulisses Guimarães, que com a Constituição em punho bradou: “traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, (…) mandar os patriotas para prisão, o exílio, o cemitério”. Certamente, conhecemos o caminho da repressão e não vamos retornar a ele. Ainda estamos cá, por isso carregamos em nós a memória e a luta de Rubens Paiva e de todos e todas que sofreram na mesocarpo a dor insuportável da violência do Estado Dominador!
* Ronaldo Queiroz de Morais é doutor em História Social na Universidade de São Paulo (USP).
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Nascente: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo