Quase todos os dias no Brasil, grupos se juntam em volta de uma mesa ou de instrumentos, batucando e trocando ideias sobre o que já foi e o que está por vir. O tom da conversa é referto de música — às vezes lá, depois sol, dó… e ninguém se atropela. Pelo contrário, tudo se soma, no ritmo sincopado que, há mais de um século, fundou a roda de samba. E desde logo, ela segue uma vez que talvez a forma mais revolucionária de fazer política por cá.
Para Fabiana Cozza, uma das maiores vozes do samba contemporâneo, essa arte é muito mais que música: é resistência, identidade e transformação.
Com décadas de dedicação à música, tanto em rodas quanto na universidade, a cantora lançou recentemente o álbum Urucungo, com letras de Nei Lopes, e conversou com o Muito Viver, programa do Brasil de Vestuário, sobre a força do batuque e o papel necessário do samba na construção da identidade e resistência negra no Brasil.
“O samba ensina a caminhar junto de forma muito revolucionária, porque muda e transforma. A música é o argumento, mas a roda de samba tem camadas de convívio, de solidariedade. Isso é muito importante”, afirma a artista.
O Urucungo não é exclusivamente um álbum, mas um tributo a Nei Lopes, um dos maiores mestres da música brasileira, e ao legado de resistência e celebração cultural que o samba carrega. Fabiana compartilhou uma vez que foi a experiência única de gravar esse trabalho, que surgiu de uma invenção inesperada de canções inéditas de Nei Lopes, feitas pelo produtor Marcus Fernando: “Eu me senti muito lisonjeada. Esse trabalho sela minha amizade com o Nei também”.
Mestra pela PUC São Paulo em fonoaudiologia e doutoranda em música na Unicamp, a artista e estudante destaca a luta para ocupar a ateneu sem deixar de lado as referências do saber popular, uma vez que a oralidade.
“É muito difícil, a ateneu ainda é muito reticente com as nossas pesquisas, as nossas falas, mas, sobretudo, a maneira uma vez que nós adquirimos conhecimento. Mas é preciso ocupar esse espaço”, afirma.
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Vestuário: Você lançou recentemente o álbum Urucungo em homenagem a Nei Lopes. Uma vez que foi a produção deste trabalho?
Fabiana Cozza: O Urucungo, a gente acabou lançando o ano pretérito, em dezembro. Mas a história é interessante porque o Marcus Fernando, que é produtor do Nei Lopes, estava com o Nei e eles estavam organizando os arquivos do Nei, revendo, revisitando canções, pedaços de canções. Enfim, eles se depararam com um material incrível, imenso e que estava inédito até logo.
Eles conversaram e me ligaram e falaram “olha Fabi, tem um tesouro cá do Nei Lopes com parceiros e uma parceira, que é a Fatima Guedes, e o queremos saber se você não tem interesse também de ouvir para gravar”.
Essa teoria é um pouco secção do Marcus Fernando e eu aceitei, porque eu não sou boba e porque é uma obra que eu acho que norteia a figura do Nei Lopes, seus pensamentos e escritos, que, de certa forma, nortearam as minhas escolhas uma vez que cantora também, uma vez que uma mulher negra sambista.
Portanto quer manifestar, eu ser convidada por ele e ter nas minhas mãos uma obra vasta, eu me senti muito lisonjeada e esse trabalho eu acho que ele, de certa forma, quartinho muito a minha amizade com o Nei também.
A gente fez esse ano o lançamento, em março, no Sesc Pompéia (em São Paulo), com dois dias de lar enxurrada e com a presença do Nei, o que foi muito emocionante. Depois em julho nós repetimos esse show no Sesc Vila Mariana, lar enxurrada também nos dois dias com a presença do Nei.
O que traz para a gente a certeza, pelo menos particularmente, das escolhas que eu fiz, sabe? Ter ali o Nei junto no palco, contando para as pessoas um pouco das histórias das canções, do seu pensamento. É uma obra importante.
Uma particularidade — única, talvez — do samba é essa autorreferência que ele faz aos grandes bambas, a toda história do ritmo. Qual é a valia disso? Você entende que o samba é o único, se tratando de gênero músico, mundialmente falando, nessa autorreferência, nesse zelo com as fundações histórias?
Eu acho que o samba não é o único, a ser uma arte que compreende a história e quem veio antes, ajudando a edificar essa história. Eu acho que o jazz faz isso e outras culturas também. Eu acho que isso é uma particularidade também da história da diáspora negra, onde as filosofias que assentam essas histórias, essas culturas, elas estão sempre olhando para os ancestrais.
Porque o antepassado, ao contrário do que algumas pessoas possam imaginar, não é alguma coisa estático do pretérito, mas é alguma coisa que caminha conosco, é alguma coisa que nos dá a exigência de estarmos cá, de olharmos o horizonte e tudo mais.
Mas o samba, falando do samba principalmente, é uma arte agregadora, congregadora, participativa, ativa, sátira. Portanto, nesse sentido, o samba, no caso do Urucungo, quando você está mencionando uma vez que Nei reverencia também e se lembra de uma forma elogiosa dos seus pares. Isso é um traço de evidência do samba.
Às vezes, eu olho para outros gêneros da música e vejo uma vez que isso quase não acontece. É muito difícil você ver artistas de renome da música pop, por exemplo, falando dos seus, das suas referências. “Ah, eu estou cantando cá, mas quem foi minha referência, foi fulano de tal, antes de mim veio fulano”. Você não vê isso suceder, pelo menos, com a frequência, regularidade com que o samba. Isso é um fundamento no samba.
E é interessante pensar também que não é um fundamento de subalternidade, é um fundamento de horizontalidade, de você olhar se reconhecer e fala assim: “olha, ele veio antes, ele é meu professor”, por isso que a gente labareda de rabi e mestra.
Eu acho muito importante para a constituição de qualquer pessoa reconhecer que teve mestres e mestras. Eu uma vez que muito pequenininha fui para o samba, talvez eu tenha encarnado um pouco isso, porque, por exemplo, eu sempre falo dos meus professores, professores e professoras que não são do samba, mas eu lembro da minha primeira professora, que me alfabetizou, por exemplo.
Eu, particularmente, tenho uma relação com a instrução que é muito intensa, é muito respeitosa. Eu acho que a instrução é o nosso farol, para absolutamente tudo o que a gente possa fazer e deseja fazer.
Nesse sentido, o samba também passa por esse lugar educativo, formativo.
O samba é a maior instrumento que o Brasil tem no combate ao racismo?
Eu acho que é uma das ferramentas e, sem incerteza nenhuma, uma instrumento potente, porque o samba se manifesta no país uma vez que um todo.
A Beth Roble tinha uma frase que o Casca, meu companheiro sambista de São Mateus, me falou uma vez e que eu nunca esqueci. A Beth dizia, disse na boca pequena ali no convívio com os amigos, que ela não tinha incerteza que a grande revolução do país poderia ser feita através do samba.
Hoje a gente tem escoltado uma efervescência das rodas de samba novamente, não que elas não acontecessem durante um tempo. Em São Paulo as comunidades de samba mostram isso, uma vez que esse é um movimento estável. Porque quem é de samba não é de um território músico especificamente, mas é uma outra construção, é uma construção moral.
Você participar, por exemplo, de uma roda de samba, sobretudo nas comunidades de vários amigos que eu vejo em São Paulo, faz secção de uma construção de cidadania, está em um outro lugar. A valia está muito além de uma questão meramente músico ou de gênero, uma vez que se toca, quais são os instrumentos, e isso, no fundo, sejam bons argumentos para reunir. A música é um argumento, mas essa música que se faz tem camadas de convívio, de relação, de solidariedade. Isso é muito importante no samba.
Se a gente pega o período da pandemia, eu me lembro muito de um dos dias em que o Chapinha do Samba da Vela, que é um companheiro e um dos fundadores da Vela, me escreveu e falou: “Pretona, olha só, a gente está arrecadando cá para a comunidade material de limpeza, roupa, se você puder ajudar”.
E eu me lembro que fui levar uma caixa e, quando fui levar, tinha toda uma organização ali, porque a gente estava na pandemia, ninguém podia chegar perto, se conversar, todo mundo de máscara. As pessoas que eram do Samba da Vela estavam ajudando, organizaram de uma forma que você deixava a sua doação e tinham outras pessoas que vinham buscar e outras pessoas limpavam. Isso é revolucionário.
Eu acho que a gente que é de classe média precisa aprender muito com as pessoas do samba, precisa aprender muito com as comunidades, com os quilombolas. Precisa aprender dentro do terreiro, porque o estágio, a matriz, o fundamento, a semente do samba é o candomblé.
Eu sou uma mulher de candomblé, de terreiro, assim. Quando eu vou para o meu terreiro, que fica em Recife, e a comunidade a qual eu faço secção, é uma comunidade humilde, eu repenso um pouco a minha vida, sabe? Eu repenso as minhas, os dias em que eu congraçamento reclamando e lembro de uma vez que aquelas pessoas dividem o que elas têm uma vez que para outras, uma vez que aquelas pessoas se sentem iguais às outras pessoas. E eu acho que a gente perdeu essa capacidade.
Eu fico pensando essas coisas, eu acho que realmente é revolucionário. E tem muitas coisas acontecendo o próprio MST, o movimento de moradia, o que é isso senão as pessoas efetivamente olharem para a urgência umas das outras e falar “sozinho a gente não chega, mas junto a gente vai longe”.
Acho que o samba, nesse sentido, ensina também sobre caminhar junto de forma muito revolucionária, porque muda, transforma.
Você é mestra pela PUC e agora é doutoranda de música na Unicamp. Uma vez que o samba se une à ateneu? Uma vez que funciona esse movimento acadêmico?
Eu acho que a gente tem côncavo um espaço dentro da ateneu nos últimos 20 anos, sobretudo com a Lei das Cotas, que talvez seja dos projetos mais importantes que o Brasil teve nos últimos 50 anos, na minha opinião. Porque é isso que, talvez daqui a 40, a gente vai poder olhar com um pouco mais de intervalo e falar assim uma vez que foi importante. Olha uma vez que o Brasil foi redescoberto. Eu acho que esse é o nosso papel enquanto pesquisadores negros, negros, negres, indígenas.
É muito difícil, a ateneu ainda é muito reticente as nossas pesquisas, as nossas falas, mas, sobretudo, a maneira uma vez que nós adquirimos conhecimento.
Porque, por exemplo, se eu for pensar a partir desse lugar de artista, que convive com saberes e com pessoas sábias de terreiro, de escolas de samba, que não necessariamente passaram pela escola formal, o nosso grande instrumento de conhecimento e de reflexão é a oralidade.
Existe uma reticência por grande secção da ateneu em relação a isso.
Eu acho que eles acenam entusiasmados, mas a prática disso ainda é muito difícil, a gente está lá dentro um pouco também para mostrar e propor que esses entendimentos e essas maneiras outras de linguagens, de maneira de se expressar, elas também são saberes tanto quanto o livro, tanto quanto as formas mais clássicas e até conservadoras de saber.
Eu vejo essas minhas escolhas, no primeiro momento fazer mestrado em fonoaudiologia. A fonoaudiologia está muito perto do meu campo, do campo da voz, mas também um recorte da superfície da saúde. Mas não atoa e eu fui fazer na PUC de São Paulo, porque ali eu encontrei também um grupo de professoras, principalmente o professor Tuto, onde você tem uma atenção e um interesse no sujeito.
Isso muda muito quando você vai escutar a voz de alguém considerando as suas particularidades, a sua singularidade e, no meu caso, hoje, agora já no doutorado, eu já penso um pouco dissemelhante que é pensar esse sujeito a partir de um coletivo, a partir do lugar da cultura, é isso que a gente tem também trabalhado dentro do doutorado.
Eu concluindo do doutorado, eu vou ser a primeira mulher negra da família a ter um doutorado. Isso para nós é uma grande conquista.
A gente ouve muitas pessoas também uma vez que eu, outras mulheres falando isso, mas eu sou uma mulher que tem quase 50 anos, tenho 48 anos, hoje vou fazer 49 em janeiro, você vê, eu não sou uma jovem que está se formando doutora, porque essa exigência não me foi apresentada antes, eu não tinha exigência de fazer um doutorado. Eu continuo talvez não tendo em termos do cotidiano da vida.
Sou uma artista que trabalha muito para poder manter a sua lar, manter a sua equipe, porque hoje diretamente eu ofício, no Urucungo, por exemplo, 14 pessoas, recebendo um salário decente, com uma estrutura que não é luxuosa, mas que é uma estrutura digna para que as pessoas possam trabalhar. Portanto, eu não tive tempo.
Às vezes na Unicamp, quando eu passava na livraria e via as estudantes passando o dia lá. Isso é uma exigência que todas as pessoas, todos os estudantes tem que ter. Não um grupo. Eu quero que aquela moça, aquele menino fiquem lá mesmo na livraria. Coisa maravilhosa poder permanecer num espaço pesquisando e eu adoro esse lugar. Mas eu não tenho essa exigência até hoje.
E os meus pais não tiveram, mas me deram exigência de entender a valia e o valor da instrução. Por exemplo, eu tenho uma mana que é um pouco mais novidade do que eu, 1 ano e 9 meses. A minha mana mora fora do país, a enfermeira e continua se especializando, a ponto de hoje dentro da superfície dela, ser é uma referência no Canadá.
Eu acho que a gente aprendeu a prelecção de lar da Dona Marinês, minha mãe, professora da Escola Pública, se aposentou na Escola Pública e do meu pai também, que é um varão preto que dois diplomas pela PUC, numa quadra em que ele era o único varão preto.
Hoje eu acho que essas coisas estão diferentes, mas, por exemplo, no meu doutorado eu tenho mais uma colega preta. É pouco, é muito pouco. Portanto a gente precisa se multiplicar e incentivar. É muito importante isso, a gente ocupar esse espaço também.
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Edição: Nicolau Soares