Esta semana, a discussão sobre a jornada 6×1 ganhou força. É um dos assuntos mais comentados na rede social X/Twitter. Fazia tempo que uma questão trabalhista não mobilizava assim. Trata-se de um projeto de emenda constitucional apresentado pela deputada Erika Hilton, para mudar o inciso XIII do art. 7o da Constituição da República.
O texto atual refere “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a indemnização de horários e a redução da jornada, mediante negócio ou convenção coletiva de trabalho”.
A proposta alteraria esse texto, para constar: “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, facultada a indemnização de horários e a redução de jornada, mediante negócio ou convenção coletiva de trabalho”. A redação tem, pelo menos, dois problemas: se a jornada é de 8h, durante 04 dias na semana, a fardo semanal deve ser de 32 horas, e não 36. E, se autoriza indemnização sem proibir o aumento da jornada, na prática zero se altera.
Olhando minhas anotações, recuperei textos que escrevi sobre a proposta de emenda à Constituição (PEC 231/1995), que propunha redução da fardo semanal para 40h e aumento do suplementar de horas extras; sobre a PEC 393/2001, que também previa redução de jornada e foi arquivada em 31/1/2023. Ainda em abril de 2005, o Senador Paulo Paim propôs (Projeto de Lei 104/2005) redução da fardo semanal para 36 horas semanais, sem redução de salário, projeto que também foi arquivado. Em tramitação, há a PEC 221/2019, que tem proposta similar: mantém a jornada de 8h, mas reduz a fardo semanal para 36 horas. O problema é que também há a PEC 300, que propõe, entre outros retrocessos, o aumento da jornada para 10h.
A discussão sobre a redução dos dias de trabalho, agora, foi deflagrada, nas redes sociais, por Rick Azevedo, com o nome de movimento Vida Além do Trabalho. Rick foi eleito vereador pelo Psol e segue em campanha por alguma coisa que é medial para a nossa sociedade: reduzir o tempo de vida que precisamos necessariamente usar para conseguir quantia e, com isso, ter chegada aos bens indispensáveis para viver.
Ano pretérito, algumas empresas de outros países testaram a possibilidade de reduzir dias de trabalho sem aumentar a jornada. No Reino Uno, 61 empresas de diferentes setores concordaram em participar do projeto piloto. A fardo semanal foi de 32h, durante quatro dias, com três dias de folga na semana. Um sucesso! Mas não unicamente para trabalhadoras e trabalhadores, também para as empresas, que disseram ter percebido um aumento de produtividade e de alegria com o trabalho. Segundo reportagem da CNN Brasil, 52 delas referiram que manterão a semana de 4 dias de trabalho e 3 dias de sota, mesmo depois o termo da experiência.
A primeira asserção importante sobre esse tema, logo, é de que a redução da jornada é uma urgência, pois quanto mais trabalhamos por salário, menos tempo sobra para tudo o mais que importa na vida. Inúmeras pesquisas mostram a relação entre jornadas extensas e burnout, depressão, acidentes. Não há melhor modo de implicar politicamente, estimular o estudo, a leitura, o engajamento com a comunidade, pois para tudo isso precisa tempo.
Hoje uma amiga comentou que, quando está ansiosa, faz uma reza ao tempo, tal porquê Caetano Veloso nos ensina em sua música. O tempo nos permite refletir, amar, interagir. A verdade numulário, em sua versão neoliberal, com metas, teletrabalho, jornada maleável e a banalização das horas extras, nos rouba o tempo.
A iniciativa da deputada Érica Hilton deve ser saudada, amplamente divulgada e discutida com a seriedade que o tema merece. Não porquê uma novidade, enfim faz bastante tempo que essa luta pela redução da jornada está sendo travada. Uma vez que uma urgência, um tema inadiável.
Enfim, a extensão cada vez maior do tempo de trabalho é um tendão exposto, uma arma de dominação bastante eficiente para o capital. Para que essa discussão avance, porém, é importante compreender que não existe graduação 6 x 1 prevista por lei no Brasil. Nunca existiu.
Além da disposição constitucional, que já referi, a legislação trabalhista, cuja redação já foi alterada mais de uma vez, estabelece também a jornada máxima de 8 horas. Sempre foi, portanto, perfeitamente provável trabalhar 8h por dia, três, quatro ou cinco dias por semana, pois esses são limites máximos, não mínimos.
De outra secção, fardo semanal não se confunde com jornada. Jornada é dia de trabalho. Fardo semanal é a quantidade de horas colocada à disposição do empregador, em uma semana.
Durante o processo constituinte, houve demanda da classe trabalhadora para a fixação de uma fardo de 40h semanais de trabalho, justamente para tornar ainda mais difícil a exigência de trabalho aos sábados ou domingos. A fardo semanal, à era, era de 48h. A redação vencedora, porquê vimos no início deste texto, foi a fixação de uma fardo semanal máxima de 44h. É o sumo, não o mínimo.
Por isso, insisto que: a) nunca houve graduação de 6 x 1 estabelecida em lei no Brasil; b) nunca houve impedimento de que o trabalho fosse tomado menos dias por semana, com mais dias de folga, além do domingo.
O que há – e esse deve ser o ponto medial das discussões, se efetivamente quisermos levar a sério a taxa da redução do tempo de trabalho – é uma previsão de possibilidade de indemnização de horas extraordinárias por folga, que na prática elimina esses limites legais.
O cláusula 7º da Constituição da República não tem só o inciso XIII. Sobre o tempo de trabalho, garante, também: “jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva” (XIV); “repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos” (XV) e “remuneração do serviço inimaginável superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal” (XVI). Esses dispositivos foram amplamente discutidos no processo constituinte. Havia a proposta de proibição de realização de horas extraordinárias, por exemplo, que acabou não prevalecendo.
Logo, já há garantia de que ninguém deve trabalhar mais de 8 horas por dia ou mais de 6 horas, se houver vez de revezamento, muito porquê de que deve ter, no mínimo, um dia de folga na semana preferencialmente aos domingos. Se trabalhar além desses limites, deve receber o valor da hora de trabalho com pelo menos 50% de acréscimo.
Muito, todas as pessoas que estão lendo esse texto sabem, por experiência própria ou de alguém próximo, o quanto essas previsões constitucionais estão distantes da verdade das relações de trabalho. As horas extras foram banalizadas, o “preferencialmente aos domingos” vem sendo entendido porquê um domingo por mês e quem atua em empresa que trabalha em turnos, faz jornada de 12h ou mais. Muita gente trabalha além do tempo combinado, sem receber horas extras. São súmulas, interpretações, entendimentos e alterações legislativas que, desde a dez de 1990, vêm banalizando esses limites e, com isso, invadindo, com o trabalho obrigatório, cada vez mais o que sobra de tempo de vida.
Tenho escrito sobre a persistência de uma racionalidade escravista. A violência colonizadora nos constituiu porquê um país, cuja extração de trabalho se deu, porquê regra, mediante a escravização, e não o pagamento de salário. Extrair tempo sem remunerar ou exigir uma intensidade cada vez maior de trabalho, são elementos comuns aos diferentes países capitalistas. A racionalidade escravista, porém, faz com que mesmo diante de regras de limitação do tempo de trabalho, os poderes de estado se alinhem aos empregadores para encontrar subterfúgios que eliminem qualquer tipo de controle. Por isso, mesmo com o parâmetro constitucional vigente, é cada vez mais difícil encontrar alguém que trabalhe no sumo 8h por dia ou 44h por semana.
Se o que acabei de grafar é verdade, logo, o problema está em outro lugar. Modificar o inciso XIII do cláusula 7o da Constituição talvez não seja suficiente.
A banalização da exploração do trabalho fora dos limites estabelecidos na Constituição e na CLT se dá, mormente, através do sistema de indemnização de trabalho por folga.
Em 1988, a redação da CLT sobre a possibilidade de extrapolar a jornada máxima, em “número não excedente de 2 (duas), mediante negócio escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho” (art. 59) tinha porquê limite “o horário normal da semana” e a jornada máxima de dez horas” (§ 2º do art. 59). Adotado mormente nas indústrias, esse sistema de indemnização estabelecia a possibilidade de jornadas de 8h48min, de segunda a sexta, com folga também aos sábados.
A Constituição, portanto, ao fixar a possibilidade de “redução ou indemnização da jornada”, no inciso XIII em que fixa o sumo de 8h de trabalho por dia, tinha uma redação conciliável com esse limite: todas as horas talvez trabalhadas além do limite constitucional precisavam ser compensadas por folgas no sumo dentro do mesmo mês.
A Lei 9.601 de 1998, porém, alterou o art. 59 da CLT e a indemnização passou a poder ser realizada em até um ano. O pressuposto de ressarcir a fadiga da semana com o repouso no sábado se perdeu completamente. Não por possibilidade, o regime passou a ser chamado de banco de horas, denunciando uma visão econômica do tempo de vida, posto à disposição do empregador porquê mercadoria de troca.
A Lei 13.467 de 2017 (mal denominada “reforma” trabalhista) piorou ainda mais a situação. O art. 59 segue estabelecendo que o sumo de horas extraordinárias deve ser duas por dia, mas ganha dois novos parágrafos fixando a possibilidade de negócio individual escrito ou tácito, entre empregado e empregador. E inclui um art. 59-A, que autoriza “negócio individual escrito, convenção coletiva ou negócio coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de sota, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimento”. O parágrafo único ainda refere que a remuneração mensal “abrange os pagamentos devidos pelo sota semanal remunerado e pelo sota em feriados, e serão considerados compensados os feriados e as prorrogações de trabalho noturno”.
Doze horas, sem sota e sem recta à refolho, se houver trabalho em domingo. Uma vez que alguma coisa assim pode ser constitucional?
Pois muito, as decisões judiciais vem chancelando regimes de 12h de trabalho, nem sempre com a folga das 36h consecutivas. E, mesmo quando reconhecem que o banco de horas não está sendo executado conforme a previsão lítico, aplicam o art. 59-B. Também incluído na CLT, pela Lei 13.467, esse dispositivo refere que, se a indemnização não for observada em seus limites, ou seja, se a pessoa for obrigada a trabalhar além de 12 horas sem pausa, não haverá “repetição do pagamento das horas excedentes à jornada normal diária se não ultrapassada a duração máxima semanal, sendo devido unicamente o respectivo suplementar”. O parágrafo único acrescenta que a “prestação de horas extras habituais não descaracteriza o negócio de indemnização de jornada e o banco de horas”.
Até mesmo as atividades reconhecidamente nocivas à saúde, que causam adoecimento, podem ser exercidas em regime de 12h (parágrafo único do art. 60, também incluído pela Lei 13.467).
O regime é flagrantemente inconstitucional.
O argumento perverso de que há folga de 36h depois a jornada de 12h não consegue resistir à verdade, porque é muito mais generalidade encontrar pessoas trabalhando 12h por dias consecutivos (ainda que em dois empregos diferentes), do que o contrário. As atividades que mais utilizam esse regime são aquelas ligadas à limpeza, segurança e saúde. Setores que praticam baixos salários, fazendo com que boa secção das trabalhadoras e trabalhadores se obrigue a manter mais de um vínculo. Aqueles que trabalham em uma só empresa dobram turnos com frequência, o que significa a carência real da folga de 36h, isso sem falar nas atividades, para as quais resiste-se em reconhecer proteção social: motoristas, entregadores, faxineiras, manicures, pessoas que trabalham todos os dias por 12h ou mais, para poder sustentar uma vida minimamente decente.
A experiência do Reino Uno não é isolada. Outros países já reduziram jornada e fardo semanal de trabalho. Na Holanda, a média é de 29,5 horas por semana. Na Dinamarca, 32,5 horas. Na Noruega, 33,6 horas por semana. Os dados são da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e indicam que estamos na contramão da história, reforçando a teoria de que a racionalidade escravista interdita as possibilidades de limitação efetiva do tempo de trabalho.
As propostas para a redução da jornada ou da fardo semanal são necessárias e urgentes. Para que tenham efeito prático, é importante a revogação integral da Lei 13.467. É preciso voltar a considerar horas extraordinárias porquê extraordinárias; ultimar com a possibilidade de trabalho por 12h consecutivas, venda de pausa e relativização da relevância da folga em sábados e domingos. É necessário reconhecer vínculo de ofício para quem trabalha, mesmo que em horário maleável, dirigindo, fazendo unhas ou faxinas. E impor a observância dos limites da duração do trabalho a todas as categorias, sem exceção.
De qualquer modo, pautar o tema é fundamental. Modificar a verdade adoecedora das extensas jornadas, também.
É preciso ocupar a possibilidade de ter vida além do trabalho.
* Valdete Souto Severo é doutora em Recta do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Recta e Processo do Trabalho da UFRGS
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Nascente: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo