“Minha mãe, meu pai, meu povo” (en)cantaram Bethânia e Caetano para uma povo no Mineirão, em Belo Horizonte – primeiro show de grandes proporções dos irmãos santamarenses nesta turnê de 2024 – para murado de 55 milénio pessoas, em seguida quatro apresentações no Rio de Janeiro.
Os versos de “Tudo de novo”, de autoria de Caetano, seguramente costuram os sentidos e os sabores de mais um espetáculo que tem suas origens no quintal do velho sobrado que viveram em Santo Amaro, no Dique do Tororó em Salvador, no pavimento sagrado do Gantois, nas vibrações da bateria da Mangueira e no compromisso com sua gente, esse povo que deveria fulgir, não morrer de míngua.
Bethânia e Caetano, crias de Dona Canô e de seu Zezinho, já dividiram muitos palcos. Em 1964, com o “Nós, por exemplo” e o “Novidade bossa velha, velha bossa novidade”, em 1966, por ocasião do Festival Internacional da Melodia, defendendo “Orla-mar” (primeiro e único festival que Bethânia participou), em 1976 e 2022, com os Doces Bárbaros, em 1978, com o primeiro show da dupla disponível por meio da gravação Bethânia e Caetano ao vivo.
A história dos irmãos, que se cruzam desde os laços consanguíneos, foi construída com parcerias e solidariedade mútua. Bethânia exige apresentar uma cantiga de Caetano, ainda ignoto, por ocasião de sua estreia no emblemático Opinião em 1965, abrindo caminhos para que o público carioca conhecesse seu irmão. Por sua vez, Caetano labareda atenção para o traje de Bethânia, mesmo sem participar organicamente do movimento tropicalista, ter oferecido sua imposto, estimulando que ele pudesse prestasse mais atenção na guitarra elétrica e na musicalidade da Jovem Guarda.
O reencontro que festeja essa irmandade não poderia ter ocorrido em momento mais oportuno para uma geração de brasileiras e brasileiros que acompanham os mais de 50 anos de curso da dupla. A guião eleitoral do bolsonarismo nas eleições presidenciais de 2022 abriu caminho para a retomada da política cultural no país, evidenciando a valia da arte da cultura tanto para a identidade vernáculo quanto para a disputa de ideias na sociedade. Fazedores de arte em todo o país puderam, com a retomada do Ministério da Cultura no governo Lula, respirar outros ares para enfrentar os escombros dos quatro anos de vontade, perseguição e negacionismo do governo anterior.
A guião eleitoral do bolsonarismo em 2022, sem isso ignorar sua força social atual, significou, metaforicamente, um verdadeiro gesto de esperança, uma profissão de fé num país de extraordinárias grandezas, tão muito representadas por Caetano e Bethânia.
O show dos irmãos Veloso em 2024 ocorre em plena disputa eleitoral acirrada nos municípios brasileiros e, sem excesso, trata-se de um espetáculo que nos convida sintonizar o vigor estético da apresentação com os desafios de construção de um projeto de país. Com qualidades técnicas, musicais e roteiro muito muito amarrados pelos artistas e suas equipes, o espetáculo apresenta um envolvente cênico com belo trabalho de luzes e projeções que dão corpo ao roteiro assente nas tradições da música brasileira, mais especificamente, às africanidades que conectam o Recôncavo da Bahia ao Rio de Janeiro, o samba de roda à Estação Primeira de Mangueira.
Doutro lado, o show nos convida ao diálogo: às denúncias das emblemáticas canções “Um índio” e “Marginália II”, as projeções do fotógrafo Edgar Xakriabá e o polêmico tema da liberdade e da tolerância religiosa se destacaram. Uma vez que apresentar ao público canções que ligam a fé católica em Nossa Senhora da Purificação, o candomblé e um louvor evangélico em um país lacerado pelo racismo religioso e, ao mesmo tempo, riquíssimo em inconstância religiosa? Encarar esse duelo da maior valia não é tarefa fácil, mas Caetano e Bethânia expuseram essa ferimento urgente de ser enfrentada: de um lado uma juventude progressista que vê interditada o diálogo com um largo segmento do povo brasiliano vinculado às denominações evangélicas, de outro, uma parcela hegemônica que, diante do racismo estrutural, violenta e combate qualquer referência às religiões de matriz afro-brasileira. Neste quadro multíplice e desigual, duas vozes cantam para 55 milénio pessoas que a inconstância religiosa é um traje indiscutível e uma propriedade pujante da formação cultural brasileira.
Só duas vozes com a grandeza extraordinária de Bethânia e Caetano poderiam nos levar ao tirocínio da reflexão e do debate com tanta responsabilidade, zelo e reverência pelo povo brasiliano, enfim, eles aprenderam “sempre pedir licença / mas nunca deixar de entrar”. Duas vozes projetadas pela capacidade coletiva deste país, marcado pela tradição verbal, trovar a sua veras e, com isso, rever sua história e erigir uma novidade História.
* Leonardo Nogueira é doutor em Serviço Social e professor da Universidade Federalista de Ouro Preto.
**Levante é um item de opinião. A visão do responsável não necessariamente expressa a risca editorial do Brasil de Vestuário.
Edição: Nathallia Fonseca
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