“Se muito me lembro, era um dia de setembro. Um dia terrificante. Nos colocaram em um ônibus virente escuro. Eu não entendia para onde estava indo ou o que estava acontecendo. Lembro de olhar pela janela e ver minha mãe chorando. Essa imagem continua gravada na minha mente e no meu coração.”
Assim começa o relato de Ramona Klein sobre o dia em que, 70 anos detrás, foi retirada da lar onde vivia com sua família e levada para um internato de crianças indígenas no Estado americano da Dakota do Setentrião.
Klein, membro da tribo Turtle Mountain Band of Chippewa, tinha 7 anos de idade quando chegou ao internato de Fort Totten, em 1954.
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Durante os quatro anos seguintes, ela seria submetida a uma rotina que incluía castigos corporais e abusos sexuais.
Sua trajetória é semelhante à de outras centenas de milhares de crianças indígenas dos Estados Unidos e faz secção de um capítulo trágico da história do país que só agora começa a ser explorado a fundo.
A partir de meados do século 19 e ao longo de mais de século anos, o governo federalista financiou centenas dessas instituições ao volta do país.
Mais de 200 delas eram administradas por instituições religiosas, sendo pelo menos 80 pela Igreja Católica.
O objetivo era fazer com que jovens indígenas esquecessem sua cultura, linguagem, religião e identidade e assimilassem os costumes dos americanos brancos.
A ênfase não era na ensino formal, mas em trabalho doméstico e agrícola, mesmo para crianças pequenas.
Nesses locais, eles estavam sujeitos a “abusos físicos, sexuais e emocionais desenfreados, doenças, fome, superlotação e falta de assistência médica”, segundo o Departamento do Interno, que lançou em 2021 uma investigação sobre o tema.
“Muitas crianças nunca voltaram para lar”, disse o Departamento em relatório divulgado em julho.
“Com base nos registros disponíveis, concluímos que ocorreram pelo menos 973 mortes documentadas de crianças indígenas no sistema de internatos entre 1819 e 1969.”
Foram localizados “pelo menos 74 locais de sepultamento em 65 antigos internatos ao volta do país”.
No entanto, uma vez que grande secção dos abusos e mortes não foi documentada, é difícil saber o número exato e as causas dos óbitos ou a identidade das vítimas.
“O Departamento reconhece que o número real de crianças que morreram em internatos indígenas é maior”, apontou o relatório.
Muitas morreram em decorrência de doenças, outras uma vez que resultado dos abusos sofridos.
A secretária do Interno, Deb Haaland, primeira indígena a ocupar o função e cujos maiores foram enviados a internatos, percorreu o país durante um ano ouvindo sobreviventes.
Muitos estão na lar dos 70 ou 80 anos de idade, e há urgência em registrar seus depoimentos.
‘Não consigo imaginar o que devem ter sofrido’
“Não acho que meus pais realmente tiveram escolha”, diz Klein, que era uma entre oito irmãos em uma família pobre, que vivia em uma lar pequena sem chuva encanada ou eletricidade em uma suplente em Belcourt, em Dakota do Setentrião.
“Talvez a escolha tenha sido entre os filhos passarem míngua e indiferente ou irem para o internato. Não consigo imaginar o que devem ter sofrido. Sei que o foco, quando se fala deste período, é naqueles de nós que éramos crianças. Mas também é importante lembrar o que nossos pais viveram.”
Era generalidade que as famílias fossem coagidas por agentes federais ou religiosos a entregar os filhos.
Muitas vezes, quando havia resistência, as crianças eram levadas à força, arrastadas para fora de lar e amarradas.
Famílias que resistiam ficavam sujeitas a cortes no fornecimento de vitualhas pelo governo, e, em alguns casos, líderes indígenas chegaram a ser presos por se recusarem a entregar as crianças.
Alguns internatos ficavam a centenas de quilômetros de intervalo, e várias famílias nem sabiam para onde os filhos tinham sido levados ou eram proibidas de visitá-los.
Muitas só ficavam sabendo das mortes dos filhos quando já haviam sido enterrados.
Os internatos eram anunciados uma vez que uma maneira de “civilizar” menores indígenas, mas seu objetivo também era a “desapropriação territorial de povos indígenas por meio da remoção forçada e realocação de seus filhos”, conforme o relatório do Departamento do Interno.
Essas instituições foram criadas em uma quadra em que as tribos vinham sendo expulsas de seus territórios e confinadas em reservas, posteriormente séculos de conflitos com os colonizadores europeus.
O governo acreditava que, ao desabitar seus costumes, os indígenas poderiam furar mão das terras.
Uma lei de 1819 alocava recursos para contratar pessoas “de bom caráter moral” para ensinar aos indígenas práticas agrícolas “adequadas à sua situação” e educar suas crianças.
Essa selecção era considerada mais barata do que investir em guerras. “É simplesmente uma questão de verba”, disse Carl Schurz, que havia servido uma vez que secretário do Interno, em um texto de 1881 sobre “o problema indígena”.
“Se a ensino de crianças indígenas poupar o país de unicamente uma pequena guerra no porvir, irá poupar verba suficiente para sustentar dez escolas uma vez que a Carlisle, com 300 alunos cada, por dez anos.”
Ele se referia à Escola Industrial Indígena de Carlisle, internato fundado em 1879, no Estado da Pensilvânia, pelo general de brigada Richard Henry Pratt, que havia lutado contra indígenas no Oeste americano.
“Um grande general disse que o único índio bom é um índio morto”, afirmou Pratt em um oração que ficou famoso, ao propor uma selecção: “Mate o índio dentro dele, e salve o varão”.
‘Não chorei durante décadas’
Klein chegou ao internato com três de seus irmãos, uma mana e outras crianças da mesma suplente.
Mas não havia muita convívio, já que os meninos ficavam em dormitórios e refeitórios separados, e a mana foi colocada com crianças mais velhas.
“Uma das primeiras coisas que fizeram foi trinchar nossos cabelos e usar um pente fino e querosene para matar piolhos, mesmo se não tivéssemos piolhos”, lembra.
Esse tipo de experiência era generalidade. Os cabelos longos — considerados pelos indígenas alguma coisa sagrado e símbolo de orgulho e pelo governo uma vez que prova de que eram selvagens — eram cortados na chegada.
Segundo arquivos históricos, os recém-chegados geralmente ganhavam nomes em inglês ou eram identificados por números e eram obrigados a se transmutar ao cristianismo.
Membros da mesma tribo costumavam ser separados, para evitar que formassem laços, e as crianças eram proibidas de se conversar em sua língua nativa, muitas vezes a única que sabiam falar, sob prenúncio de espancamento.
Klein diz que sua primeira sensação do internato foi a de uma envolvente estranho, grande e indiferente. “Conseguia ouvir as outras meninas chorando”, recorda.
“Se eu pudesse descrever em uma termo, seria uma sensação de estar perdida, abandonada, muito solitária.”
Klein conta que tinha de ajudar na limpeza: “Não acho que havia zero de falso nessa secção, apesar de eu ser uma párvulo pequena”.
As camas tinham de ser feitas com sublimidade, “em estilo militar”. Os castigos por mau comportamento incluíam permanecer de joelhos sobre o cabo de uma vassoura colocada no soalho, enquanto era espancada com uma palmatória nas costas e nádegas.
“Mas eu me recusava a chorar. Decidi que não iria chorar, e não chorei durante décadas”, afirma.
Durante as aulas, sua principal memorandum é a de “ouvir várias vezes o quão burra e ignorante eu era, uma vez que eu era incapaz de aprender”.
‘Não havia ninguém a quem recorrer’
Ela conta que o rebento adulto de uma das funcionárias tinha as chaves que davam entrada ao seu dormitório.
“Eu ouvia o fragor das chaves e via a luz lanterna que ele carregava. Ele apontava a lanterna para o meu rosto. Ele usava brilhantina no cabelo, eu sentia o cheiro”, lembra.
“Ele colocava as mãos sob as cobertas e me tocava em lugares onde não deveria tocar.”
O desfeita se repetiu por várias vezes e também com outras crianças, mas ela levou anos até racontar a experiência.
“É importante lembrar uma vez que era aquela quadra. Não havia ninguém a quem recorrer. Essa pessoa era rebento de uma funcionária, ninguém iria confiar em mim.”
Vários sobreviventes relatam terem sofrido ou presenciado abusos sexuais, frequentemente por secção de funcionários ou religiosos encarregados de cuidar dos internos. No entanto, esses abusos muitas vezes não eram documentados.
“Muitos de nós tivemos que testemunhar o padre sodomizando (…), nossos colegas serem abusados sexualmente. Ninguém quer compartilhar coisas assim. Aprendi a ser possante, você não podia chorar”, relatou um sobrevivente ouvido pelo Departamento do Interno.
“Infelizmente, (o Instituto) Wrangell (que operou no Alasca até 1975) atraía pedófilos”, contou outro.
“Vi funcionários sodomizando meninos em suas camas ou nos banheiros. Meninas indo para lar no meio do ano escolar, grávidas. Muitas dessas crianças tinham 11, 12, 13 anos de idade.”
A investigação do Departamento engloba 417 internatos que funcionaram em 37 Estados de 1819 a 1969.
A National Native American Boarding School Healing Coalition (NABS), coalizão indígena criada em 2012, identificou outras 115 instituições adicionais.
As condições precárias dos internatos eram conhecidas desde pelo menos 1928, quando uma investigação federalista revelou instalações “superlotadas”, pouquidade de ensino adequada e horas de “trabalho industrial pesado”, em “violação de leis de trabalho infantil”.
O documento apontou que as crianças eram submetidas a punições severas e recebiam uma dieta “deficiente em quantidade, qualidade e variedade” e que muitas passavam míngua e sofriam de fome.
Apesar das críticas, os internatos continuaram a funcionar. Mais de 40 anos depois, em 1969, um sindicância do Congresso denunciou a separação das crianças indígenas de suas famílias e de sua cultura e descreveu a situação nos internatos uma vez que “uma tragédia pátrio”.
A partir desse sindicância, o governo federalista começou a fechar os internatos, mas calcula-se que mais de 60 milénio crianças indígenas ainda estavam nessas instituições no início da dez de 1970.
Atualmente, os internatos que permanecem abertos são administrados pelas próprias tribos ou pelo Gabinete de Instrução Indígena, ligado ao Departamento do Interno, e seu foco é no ensino da cultura indígena.
Pedidos de desculpas
Nos últimos anos, várias tribos começaram suas próprias investigações e localizaram sepulturas não identificadas com sobras mortais de crianças nas áreas onde funcionaram internatos.
Sobreviventes de abusos sexuais processaram ordens religiosas ou indivíduos responsáveis.
O Departamento do Interno diz que “o governo dos Estados Unidos deveria reconhecer formalmente seu papel na adoção de uma política pátrio de assimilação forçada de crianças indígenas” e oferecer “um pedido formal de desculpas aos indivíduos, famílias e tribos prejudicados”.
Em junho, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos publicou um documento que mencionou os internatos e a política de assimilação forçada e afirmou que “a Igreja reconhece que desempenhou um papel nos traumas vividos pelas crianças indígenas”.
“Pedimos desculpas pela lacuna em nutrir, fortalecer, honrar, reconhecer e valorizar aqueles que foram confiados ao nosso zelo”, disse o documento, sem detalhar abusos.
“Devemos fazer nossa secção para (…) quebrar a cultura de silêncio que murado todos os tipos de aflições, maus-tratos e negligências do pretérito.”
Algumas organizações, uma vez que o Congresso Pátrio de Indígenas Americanos (NCAI, na {sigla} em inglês), querem um pedido de desculpas formal do papa Francisco e que a Igreja divulgue seus registros relacionados aos internatos.
Em 2022, o pontífice viajou ao Canadá e pediu desculpas pelo papel da Igreja na “ruína cultural e assimilação forçada” no sistema de internatos indígenas naquele país. Mas não há indicação de que ele vá se manifestar sobre o que ocorreu Estados Unidos.
A NABS gostaria de um pedido de desculpas presidencial, mas também não há previsão de que isso ocorra.
No Canadá, o governo se desculpou formalmente, e sobreviventes receberam bilhões em indenizações.
Mas Torres ressalta que o Congresso americano deveria fabricar uma percentagem da verdade para localizar e indagar os registros dos internatos, inclusive os que estão em poder de instituições religiosas ou coleções privadas, e investigar mais detalhes de uma vez que operavam.
Projetos de lei para fabricar essa percentagem estão em tramitação. O objetivo seria esclarecer o número totalidade de menores levados aos internatos e de crianças abusadas, desaparecidas ou mortas, identificar locais de sepultamento e investigar os impactos de longo prazo desse sistema.
O traumatismo resultante do sistema de internatos é sentido ainda hoje, e o relatório do Departamento do Interno cita altas taxas de suicídio, alcoolismo e sujeição de drogas entre indígenas americanos.
“Há um movimento para resgatar o que foi roubado em termos de cultura, língua e costumes”, diz Torres.
“Mas o traumatismo intergeracional que muitos povos indígenas enfrentam torna isso um repto considerável.”
Sua organização criou um registo do dedo que reúne milhares de documentos e entrevistas com sobreviventes.
Uma maneira, segundo ele, de “honrar e reconhecer as experiências contadas por aqueles que as vivenciaram”.
Klein diz que os quatro anos que passou no internato marcaram sua vida.
“Isso impactou meus relacionamentos pessoais, a falta de crédito, a falta de vínculo. E, de certa forma, (me fez permanecer) muito determinada”, afirma.
“Eu achava que não era inteligente. Que era subalterno aos outros, principalmente os não indígenas. Nos passavam a mensagem de que éramos um povo sujo. E devo manifestar que minha mãe não tinha muitos recursos, mas era muito limpa e muito organizada.”
Ela diz que levou décadas para superar esses sentimentos. Uma curso dedicada ao ensino, com mestrado e doutorado em Instrução, ajudou nesse processo.
Hoje, além de compartilhar sua própria experiência, Klein faz secção da NABS e participa dos esforços para documentar histórias de outros sobreviventes e descendentes.
“É preciso coletar os relatos para que o mundo entenda essa secção da história dos Estados Unidos”, diz.
“À medida que essas histórias forem compartilhadas, nos ajudarão a remediar [o trauma]. E à medida que [nós indígenas] formos reconhecidos por nossas contribuições, talvez as pessoas percebam o quanto foi perdido, não unicamente para nossa própria cultura, mas para o mundo.”
Manadeira/Créditos: BBC
Créditos (Imagem de capote): Crianças Sioux ao chegar a um internato no Estado da Virgínia, em 1897 – Livraria do Congresso dos EUA
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