Na rombo do seu livro “Os engenheiros do caos” (2019), o jornalista e observador político Giuliano Da Empoli, descreve uma sarau de Carnaval nas ruas de Roma. Há dois elementos curiosos nessa cena. O primeiro é quem observa a sarau debutar. O poeta e pensador Johann Wolfgang von Goethe, do qual livro “Os sofrimentos do jovem Werther” (1774) havia desencadeado uma epidemia de suicídio pela Europa, num fenômeno desde portanto nomeado de “efeito Werther”: os leitores eram contagiados pelo sentimento de melancolia da personagem. Talvez o primeiro viral sombrio.
Circulação do ódio
O segundo elemento é a própria festa de Carnaval, conhecida por gabar os pequenos e diminuir os grandes, inverter as hierarquias de ponta cabeça. Uma teoria que, à primeira vista, parece muito boa.
“A diferença entre castas subida e baixa parece, por um momento, suspensa (…)”, escreve o poeta, “a liberdade e a permissividade são mantidas em estabilidade, pelo bom humor universal.”
Mais adiante, porém, Goethe observa: “Não é vasqueiro que a guerra fique séria e se generalize, portanto é terrífico testemunhar a obstinação e o ódio pessoal que vai tomando conta de todos.”
Em sua conformidade, Giuliano Da Empoli argumenta que o Carnaval é uma derrubada simbólica do poder desde a Idade Média. E que a fronteira entre a dimensão lúdica e política é frágil. Cá é impossível não se lembrar de junho de 2013, talvez o ovo da serpente da novidade vaga fascista brasileira, antecipado pelos blocos de rua ainda no governo Kassab e depois legalizados por Fernando Haddad. Uma estranha confluência entre o espírito de inversão do Carnaval, o mundo do dedo e a vida política: o despertar do gigante fascista. A inversão não é necessariamente boa.
“Não é pouco surpreendente que essa sarau tenha sido abolida, em qualquer momento, em quase todos os lugares, inclusive em Roma, ao raiar da Revolução Francesa, por temor de que se produzisse um contágio”, explica o responsável.
Para Giuliano Da Empoli, o Carnaval é o paradigma da vida política global.
É esse paradigma que explica, por exemplo, a subida do ex-coach Pablo Marçal: um oportunista de capacidades cognitivas estreitas e sem escrúpulos, que foi recluso provisoriamente em 2005 e réprobo em 2010 por participar de uma organização criminosa que invadia contas bancárias pela internet.
Só no prestidigitação do Carnaval sombrio que se tornou a política mediada por algoritmos o palerma ganha ar de inteligente, o incompetente parece capaz. E truão da golpe sonha ocupar a cadeira do rei.
Além de mostrar uma vez que a Itália contemporânea se tornou o causa dessa máquina algorítmica a serviço de um levante organizado da extrema direita – a utopia sombria de uma “Internacional Patriótico” de Steve Bannon -, o livro de Giuliano Da Empoli tem um capítulo privativo sobre figuras uma vez que Marçal, “Walto Conquista o Planeta”.
O ex-coach que pretende ressuscitar os mortos na capital paulista não tem nem mesmo o préstimo da bizarrice. É mais um falso vaticinador.
No incidente “The Waldo Moment”, de Black Mirror, que foi ao ar em fevereiro de 2023, Jamie Salter, um comediante fracassado, dá voz a um urso azul entusiasmado chamado Waldo, num programa de TV satírico.
Waldo ganha popularidade ao entrevistar e zombar de políticos. Logo, é convicto a concorrer a um missão político uma vez que uma piada. No final, o mundo se dissolve sob um regime dominador: “O antissistema tornou-se o sistema e, por trás da máscara do Carnaval, estabeleceu o regime de ferro”.
Máquina do caos
O livro do jornalista Max Fisher aprofunda alguns pontos do trabalho Giuliano Da Empoli. “A máquina do caos: uma vez que as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo” (2023) é uma longa empreitada de investigação jornalística que deveria estar na cabeceira de todos nós brasileiros. Em média, passamos mais de 9 horas por dia online, tempo superior a uma jornada semanal de 40 horas de trabalho.
A raiva é um afeto narcisista. A raiva produz engajamento. O design comportamental e a experiência do usuário das plataformas digitais são construídas, à revelia da boa intenção religiosa dos seus criadores, com uma teoria simples: manter as pessoas online e interagindo pelo maior tempo provável. Ansiosas, com ódio nos dedos, em estado de alerta porque o Brasil “vai se tornar uma Venezuela”, “chips chineses são injetados em vacinas” e “mamadeiras com pênis de borracha são distribuídas nas escolas”.
Giuliano Da Empoli traz dados do MIT que mostram que uma notícia falsa tem 70% mais chances de ser compartilhada. E que uma notícia verdadeira leva sete vezes mais tempo para atingir 1500 pessoas. O efeito Werther contemporâneo é muito mais sombrio. Teorias da conspiração alimentam a raiva. O algoritmo não só propaga o fascismo, o produz.
“Muitos na empresa pareciam quase ignorar que os algoritmos e o design da plataforma moldava propositalmente as experiências e os estímulos dos usuários e, portanto, os próprios usuários”, diz Fisher. “Era uma vez que estar numa fábrica de cigarros e seus executivos afirmarem que não entendiam por que as pessoas reclamavam dos impactos na saúde que as pequenas caixas de papelão que eles vendiam causavam”.
A ideologia ingênua do Vale do Silício diz que fazer cada vez mais gente passar cada vez mais tempo online torna o mundo um lugar melhor. Mas essa crença mística não encontra correspondência nos fatos.
“Nossos algoritmos exploram a atração do cérebro humano pela discórdia”, diz um relatório vazado do próprio Facebook. A rede é projetada de tal modo que leva os usuários a “cada vez mais conteúdos de discórdia, de forma a invadir a atenção e manter o tempo do usuário na plataforma”.
A lógica do algoritmo não exclusivamente difunde informações ruins mais rápido. Ela constroi mentes maléficas. A tecnologia não é um utensílio neutro que pode ser usado para o muito ou para mal, uma vez que pensa o senso-comum. Ela tem moldado nossa experiência com a verdade.
“A tecnologia das redes exerce uma força de atração tão poderosa na nossa psicologia (…)”, explica Max Fisher, “que transforma o jeito uma vez que pensamos, uma vez que nos comportamos e uma vez que nos relacionamos uns com os outros.”
Efeito nas crianças
O trabalho do Jonathan Haidt é ainda mais apavorante, se levarmos em conta a quantidade de crianças expostas à telas e redes sociais.
No livro “A geração ansiosa: uma vez que a puerícia hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais” (2024), o psicólogo social documenta o aumento significativo de transtornos mentais entre crianças e adolescentes, destacando a urgência da situação.
Os gráficos sobre aumento de depressão, subtracção de tempo de convívio com amigos, solidão, privação do sono são de deixar pais e mães em estado de desespero.
“Não havia muitos indícios de uma crise de saúde mental na juventude nos anos 2000. Logo, de repente, no início da dezena de 2010, as coisas mudaram”, escreve Jonathan Haidt.
O colapso da saúde mental coincide com a proliferação das plataformas digitais.
À medida que vamos passando de um gráfico a outro apresentado pelo pesquisador, fica evidente que a máquina algorítmica que enriquece meia dúzia de bilionários está minerando a saúde mental de crianças e adolescentes.
Não precisamos de nenhum metaverso. Nenhuma Matrix. Ou que a Skynet se torne autoconsciente na madrugada do dia 29 de agosto. A guerra contra as máquinas já começou. E as máquinas estão nos dominando. De um jeito tão sutil que nem mesmo a ficção científica foi capaz de prever.
Uma vez que as big techs se tornaram grandes instituições transnacionais, não dá para deixar que a negociação por regulamentação seja feita por cada país de maneira isolada, tampouco que os efeitos maléficos sejam evitados pela ação isolada de cada usuário. Detox do dedo e boa vontade não mudam o mundo.
Finalmente, só duas indústrias chamam pessoas de usuário. O tráfico de drogas. E os profetas do Vale do Silício.
* Marcos Vinícius Almeida é repórter, jornalista e redator. Rabi em Literatura e Sátira Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e é responsável do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com.
**Oriente é um cláusula de opinião. A visão do responsável não necessariamente expressa a traço editorial do jornal Brasil de Vestimenta.
Edição: Nathallia Fonseca
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